A materialidade do currículo decolonial na Educação Infantil

A Educação Antirracista é prioridade no CMEI Castro Alves e está na pauta da Secretaria Municipal de Educação de Salvador 

Lelê não gosta do que vê. – De onde vêm tantos cachinhos?, pergunta, sem saber o que fazer. O trecho da história O Cabelo de Lelê, da autora Valéria Belém, foi o mote para que Margarete dos Santos Silva, professora do Grupo 4 no Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Castro Alves, aprofundasse o tema identidade a partir da história das crianças.

“Nosso objetivo era trabalhar com a autoimagem dessas crianças. Usamos o reconhecimento no espelho e algumas técnicas de auto-retrato para que elas pudessem se ver e valorizarem a si mesmas”, relata Margarete, entusiasmada por proporcionar às meninas e meninos o que não pôde vivenciar na sua infância.

A escola é o primeiro espaço onde a criança vive a violência racial. A pesquisa Percepções sobre o Racismo no Brasil (2023) – encomendada pelo Instituto de Referência Negra Peregum e Projeto Seta e desenvolvida pelo IPEC – Inteligência em Pesquisa e Consultoria Estratégica, aponta que pessoas negras que vivenciaram este tipo de violência afirmam que ela é comum na escola ou universidade; 63% das mulheres negras entrevistadas declaram que a raça é o maior motivador de violência na escola. 

As formas de expressão do racismo aparecem de diversas maneiras na educação infantil, desde a falta de capacidade da professora de cuidar dos cabelos das crianças, passando pelas referências imagéticas presentes nos livros e nos brinquedos.    

“Não tive referências nos livros didáticos, nem na mídia, nem nos brinquedos. Não me via, não me identificava. Eu espero ser um exemplo para essas crianças, apesar da minha estética, que traz ainda marcas do que eu vivi. Quero que elas saibam que elas são lindas, que seus cabelos são lindos”, conta com a voz embargada.

Outra professora do CMEI, Carla Oliveira Costa, que trabalha com o grupo 2 e também coordena o Conselho Escolar, desenvolveu um trabalho com o livro, “A Sapatilha que Mudou Meu Mundo”, da bailarina Ingrid Silva, eleita uma das 100 pessoas negras mais influentes no mundo pela Mipad (Most Influential People of African Descent), em 2020. 

Carla conta que convidou uma aluna da escola, uma garotinha de 4 anos que estava estudando balé, para dançar com a turma. “Foi lindo ver aquela menina servindo de referência para as outras”. As crianças também participaram do Dia da Beleza, com direito a penteados com trancistas da escola e da família. 

Margarete e Carla integram um grupo, cada vez maior, de professoras e professores da Rede Municipal de Educação de Salvador comprometidas(os) com o cumprimento da Lei 10.639, que estabelece as diretrizes para inclusão no currículo oficial de todas as redes de ensino do país a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e africana.

Elas encontram no CMEI Castro Alves suporte da gestão e apoio dos colegas para construírem seus trabalhos de forma articulada. A equipe do Castro Alves realiza estudos de forma coletiva, vivências e práticas que permitem ao seu quadro de docentes um maior aprofundamento sobre como materializar um currículo decolonial no cotidiano da escola. 

Território e identidade étnico-racial

Durante a jornada pedagógica deste ano, por exemplo, as professoras do Castro Alves avaliaram a necessidade de garantir mais formação, pesquisa e projetos pedagógicos alicerçados na discussão do território e da identidade étnico-racial.

Uma decisão acertada do ponto de vista de Mille Fernandes ‘Makyesi’, Doutora em Educação, pesquisadora em Relações Étnico-raciais e professora da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, o combate ao racismo, especialmente nas escolas, aponta duas estratégias: primeiro, reconhecer a sua existência (algo que muitas escolas não fazem), e, em segundo, oferecer uma formação docente crítica que promova um conhecimento sobre a História de África e Afro-diaspórica.

Reconhecer as situações de violência permite que se abram caminhos à sua superação, além de qualificar a atuação das(os) professoras(es) no seu enfrentamento e, principalmente, na garantia de construção de espaços seguros, acolhedores que não reproduzem violências contra crianças. 

Mille afirma que a reavaliação dos cursos de licenciaturas e a ampliação de cursos de aperfeiçoamento que contemplem esta discussão são urgentes. O fato de muitas professoras(es) negras(os) desconhecerem os temas, aliado a uma educação eurocentrada, faz com que elas(es) tenham dificuldade de abordar determinadas temáticas.

“Precisamos conhecer mais sobre as nossas origens e valorizá-las. Sem este conhecimento torna-se impossível que as professoras e professores consigam acionar suas consciências políticas e elaborar planos de ação didático-pedagógica mais efetivos utilizando os saberes existentes em cada comunidade”.

Cristiane Valente, coordenadora pedagógica da Unidade, ressalta que uma outra frente de trabalho da escola tem sido a valorização do território em que a escola está inserida. O CMEI fica localizado na comunidade do Bate Facho, que leva esse nome herdado de um tempo em que a energia elétrica não era uma realidade para a comunidade. Os primeiros moradores da então ocupação acendiam fachos de luz com as folhas do licuri, palmeira típica do Nordeste.

Hoje, a energia elétrica está assegurada no bairro e são outros os problemas que preocupam seus moradores, entre os quais, as enchentes. E foi por conta delas, que Cristiane Giffoni, diretora do CMEI, causou um rebuliço no projeto arquitetônico da instituição, para assegurar que a unidade ficasse acima do nível da rua.

“Aconteceram vários episódios de alagamento na região, inclusive, envolvendo nossos alunos, que já até ficaram sem abrigo. A escola está a um metro e meio do nível da rua e podemos ser um espaço de abrigo para quem precisar”.

A implicação do CMEI com o território é reflexo de uma proposta político pedagógica alicerçada no diálogo com o contexto das crianças e das famílias, além de uma construção de reconhecimento e valorização da identidade do lugar. 

“Buscamos construir e fortalecer a identidade étnico-racial, evidenciando o orgulho de pertencer a um grupo e a um território onde a sua história e sua cultura sejam valorizadas e respeitadas”. 

Essas premissas são um caminho encontrado pelo Castro Alves, que leva o nome daquele que ficou conhecido como o “Poeta do Povo”, para fortalecer entre as crianças o sentido de pertencimento, de respeito e valorização da comunidade onde vivem.

A Unidade de Ensino realiza diversas atividades que envolvem as famílias, que promovem a pesquisa e circulação no bairro, o estímulo à conversa com os mais velhos e o conhecimento da história das lutas da comunidade, um remanescente de quilombo.

Escola, família e comunidade

O CMEI funciona em espaço próprio e novo, e para celebrar a casa nova, as primeiras ações pedagógicas, dentro da Semana de Arte e Cultura, foram convidar os moradores mais antigos do bairro para contar a história do território e andar pelas suas ruas para conhecer o local onde a maioria das crianças moram.

“Quando a instituição recebe uma criança, recebe junto sua família. A parceria família-escola é processual, construída na convivência do cotidiano”, afirma Cristiane Valente. Relações de confiança e trocas entre educadores e familiares vêm se estabelecendo desde então por meio do diálogo frequente, delimitando de forma clara os papéis, os direitos e deveres, e o valor de cada um.

Estabelecer e manter essa relação da escola com o território e as famílias é um grande desafio, mas também uma riqueza, na medida em que qualificar essa parceria de maneira respeitosa e aberta permite oferecer um espaço educativo para todas (os), que trazem os seus valores, saberes e fazeres. 

“Estamos, todos, ensinando e aprendendo, nessa parceria”, ressalta Cristiane Valente. Ela conta que o trabalho de mobilização das famílias é constante, com estímulo para que elas participem desde a construção da proposta pedagógica, o fortalecimento do conselho escolar, os plantões e reuniões pedagógicas, os grupos de WhatsApp e as ações da escola.

Um ponto de atenção da equipe pedagógica, que tem como um de seus objetivos promover o fortalecimento da identidade racial das crianças, é desconstruir a conotação religiosa, que algumas famílias fazem de alguns trabalhos desenvolvidos na escola.

A professora Carla já se deparou com situações em que era visível o desconforto dos familiares diante de algumas atividades propostas. “É um processo também educativo para as famílias, especialmente as evangélicas, que relacionam o ensino de história e cultura africanas ao candomblé, que é uma religião, como muitas outras”. 

Ela conta que nos episódios de racismo religioso vivenciados na escola, as famílias são convidadas a refletir, rever sua postura a partir da desmistificação do seu olhar. Aos poucos, a escola percebe um processo de transformação e mais respeito às diferenças. 

“Eu tenho uma mãe na minha turma que é do Candomblé. Durante uma atividade com as famílias, ela falou que a mãe Iansã era muito importante para ela. Eu pensei comigo ´agora o negócio vai pegar´, mas aí, eu acho que já tinha um clima assim de confiança, ninguém questionou nada. Todos os presentes escutaram com respeito e seguiram na atividade”, relembra com sorriso no rosto. “Aos poucos, plantamos a mudança”.

BOX 

Rede de Salvador  

A Rede Municipal de Salvador, cidade mais negra fora de África, segundo IBGE 2022, deu início a um processo de revisão, ampliação e qualificação de todos os materiais de referência da Educação Infantil, que incluem diários, portfólios das crianças, referencial curricular, guia com orientações pedagógicas para os profissionais, entre outros.

O trabalho está sendo realizado, de forma participativa, desde agosto, por uma equipe de especialistas e conteudistas identificados em diferentes partes do país. A orientação da secretaria é assegurar que o material fomente e ofereça diretrizes e atividades para a implantação de um currículo antirracista, mais inclusivo e atualizado para todas as escolas.

A revisão conta com a participação da comunidade escolar e dos gestores da Rede, via rodas de escuta e questionários. Mais de 200 representantes, entre gestores, professores, famílias e, principalmente, crianças, puderam opinar sobre como qualificar os materiais.

O Secretário de Educação de Salvador, Thiago Dantas, tem se mostrado um apoiador do processo de revisão. Segundo ele, a Educação Antirracista e a Educação Inclusiva são temas que precisam ter grande visibilidade. “O material precisa ter seu conteúdo permeado, de maneira plena, total, desses conteúdos que são princípios norteadores de todo o trabalho da Rede”, afirmou.

Fátima Santana Santos, mestre em Estudos de Relações Étnicos-raciais e consultora que está trabalhando na revisão, tem uma importante missão nas mãos: trazer uma perspectiva antirracista para os materiais pedagógicos 

Para ela, a reflexão sobre as infâncias, que está acontecendo na Rede de Salvador, a partir da compreensão de que a cidade é, majoritariamente, formada por uma comunidade negra, possibilita pensar como essas questões atravessam as infâncias. 

“Como brincam? Como sentem o mundo? (…) olhar para o território infantil, que é um território negro. Essa compreensão permite uma orientação assertiva para as(os) professoras(es) sobre sua prática cotidiana”.

A previsão da Secretaria Municipal de Educação é concluir a revisão e lançar o novo material até o final de 2024. Até lá, outras rodas de escuta para  validação dos textos serão realizadas, além de formação para gestores e professores, para que se apropriem das atualizações propostas. 

Uma resposta

  1. Essa escola municipal é um exemplo de estrutura, e mais ainda, de profissionais que fazem a diferença. Seria bom que outras escolas públicas seguissem esse modelo de gestão.

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