Avante

O que ressoa no imaginário de uma criança ao ver sua comunidade na telona?

Durante a primeira exibição do documentário “É aqui que vivemos”, na Praça do Sucuiú, em Salvador (BA), as crianças, que aguardavam inquietas pela programação, paralisaram ao ver, na primeira imagem projetada no telão, o lugar onde se reúnem para brincar. O silêncio momentâneo logo foi substituído por gritos eufóricos: “Olha, a rua!”; “É a minha avó!”; “Minha mãe está no filme!”. 

Fascinadas com o que viam e sentadas bem pertinho do projetor, as crianças vibravam a cada aparição de um novo personagem. Personagens com quem partilham vínculos, afetos e cotidianos – e que, por isso mesmo, tornaram-se alvos da clara expressão de reconhecimento, identificação e representatividade.

O documentário protagonizado pelos moradores da Baixa do Tubo conta a história da comunidade pela voz e vivências dos seus habitantes mais antigos e resulta de uma construção coletiva importante, iniciada pelo grupo de mulheres organizado e mediado pelo projeto Foco nas Infâncias – defesa de direitos na Baixa do Tubo do Coqueirinho, que atua no bairro desde 2022.

O registro memorial, embora recém-lançado, já é um patrimônio imaterial da comunidade e um legado para as crianças da Baixa do Tubo, que poderão conhecer e reconhecer a trajetória de vida dos seus familiares em conexão com o desenvolvimento do próprio território.

“Eu amei o filme, porque fala da minha comunidade. Eu aprendi que nosso bairro precisa ser resistente. Aqui não existia casa, não tinha escola. A rua era de barro, muitas coisas mudaram”, compartilhou Daniele, 10 anos, sobre o documentário.

Laís Costa Santana, moradora do Alto do Coqueirinho e uma das produtoras do documentário, explicou que a ideia do audiovisual nasceu quando o grupo de mulheres percebeu a necessidade de ter um registro que apresentasse elementos do surgimento da comunidade, como ela funciona e como os moradores a vivenciam, a fim de legar às próximas gerações o sentimento comunitário de pertença. 

“Eu tenho uma filha pequena, e ela foi o elo disso tudo. Eu acho que é importante para as crianças verem os seus pais falando, seus tios, avós, para que eles entendam que fazem parte de algo muito maior do que o simples lugar onde moram. Comunidade é sobre rede de conexão, fortalecimento, é saber que você está em um lugar que é também uma fortaleza. É para que elas saibam que devem cuidar, pois terão seus filhos e passarão esse legado para eles também. É uma memória da comunidade”, explicou Laís.

Moradora da comunidade há 40 anos, Virginia Maria Brandão também enfatizou a importância do registro para as novas gerações. “Além de mim, outras pessoas mais velhas participaram do filme: Seu Ninha, Seu Cláudio, Seu Valter, Dona Nilza. É muito importante as crianças conhecerem essa história. Elas vão ver os mais velhos contando como chegaram aqui, como era a comunidade, como foram criados. É uma reflexão do que a gente foi, de como era aqui antes”.

Maria Eduarda, 11 anos, entendeu direitinho a mensagem que os moradores quiseram passar. Segundo ela, o que os seus vizinhos disseram mostra que tudo era muito diferente na sua comunidade. “Eu gostei bastante do filme. Quando a gente crescer, acho que vai mudar ainda mais, inclusive o campo de futebol, que eu acho que o prefeito não vai deixar assim”, pontuou a menina, esperançosa.

Para Vanessa Brandão, 23 anos, que participa do grupo de mulheres e tem uma filha pequena crescendo na comunidade, “o documentário é muito importante”. Segundo ela, foi interessante conhecer a história dos moradores mais antigos e descobrir como chegaram à Baixa do Tubo. Além disso, a jovem fez questão de frisar: “No vídeo, sou eu na cena final, andando de costas, voltando para casa”.

Os relatos de identificação, orgulho, pertencimento e representatividade foram inúmeros e unânimes. Desde o – “Eu amei ver a minha mãe” – da pequena Luna, de 3 anos, até as partilhas mais elaboradas e emocionadas das mulheres após a exibição, o documentário mexeu com todas as pessoas que tiveram a oportunidade de assisti-lo naquele 08 de outubro.

“Estar nessa produção foi magnífico. Eu não sei nem como expressar a gratidão de poder assistir e saber que eu fui uma das pessoas que estavam na direção do filme”, compartilhou Laís, com lágrimas nos olhos.

A alegria das crianças após a exibição e as queixas (naturais) dos adolescentes por não aparecem no vídeo revelam o impacto da representatividade audiovisual na infância e seu poder de acionar subjetividades importantes para a formação das crianças e demais sujeitos comunitários, como a força dos vínculos, da cooperação e do pertencimento social.

 “É um filme que fala daqui do Alto do Coqueirinho. Nele, eu vi a mãe de Suelen, as tias do projeto e a tia de uma colega minha. Eu chorei, senti vontade de chorar quando vi o filme”, disse Endy, de 10 anos, emocionada. 

Roda de Mulheres

Após a exibição do documentário, que encerrou o dia de atividades promovidas pelo evento “Diálogo sobre Racismo e Intolerância Religiosa“, organizado pela Rede de Atenção Local às Crianças e Adolescentes da comunidade, cerca de 40 pessoas se reuniram numa grande roda para compartilhar as impressões sobre a peça.

O sorriso estampado no rosto das mulheres e o brilho nos olhos dos integrantes da equipe do projeto Foco nas Infâncias revelavam não somente a satisfação com o trabalho produzido, mas com o propósito alcançado – apresentar às crianças e adolescentes um registro memorial da sua comunidade.

Além das mulheres que integram o Coletivo Guardiãs da Memória, participaram da roda de conversa: Justina Santana e Tereza Cristina Soares, da Associação Comunitária do Calabar, e Patrícia Rosa, da Revista Afirmativa.

“Me chamou muito a atenção o título do documentário – É aqui que nós vivemos -, porque viver é diferente de morar. Viver diz respeito ao vínculo estabelecido com o lugar e seus habitantes. É muito importante ter esse registro, porque ele fortalece a identidade e a história da comunidade”, avaliou Tereza Cristina.

Justina Santana afirmou com contundência a alegria de ver a força das mulheres pretas representada no documentário e ressaltou o compromisso da Avante com os seus projetos. “A Avante fez um trabalho muito importante lá no Calabar. Por isso, vocês precisam aproveitar, pois estão com a faca e o queijo na mão”.

O documentário é resultado de mais de dois anos de formação política realizado com as mulheres da comunidade, por meio do projeto Foco nas Infâncias. Há três anos, o projeto promove encontros, oficinas e cursos para as mulheres do grupo de convívio da Baixa do Tubo, além de uma intensa mobilização e articulação com outros núcleos, associações e coletivos que atuam na defesa da identidade, memória e bem-viver de comunidades periféricas.

O projeto Foco nas Infâncias: defesa de direitos na Baixa do Tubo do Coqueirinho é realizado pela Avante – Educação e Mobilização Social, em parceria com a @Kindernothilfe (KNH).

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