Sob o argumento da “ausência” de segregação, as mulheres negras seguem como os sujeitos que mais sofrem, de forma invisibilizada, as consequências de dois dos maiores marcos estruturais e discriminatórios na sociedade brasileira, o racismo e o sexismo. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2024, as taxas de desigualdade social, salarial, violência letal, obstétrica e sexual, além de cor, têm gênero. O estudo mostra que as taxas de vitimização das mulheres negras são superiores às de mulheres brancas.
Quando o assunto é mercado de trabalho, a remuneração da mulher negra cai para o final da fila, agravando os marcos de vulnerabilidade. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (IBRE/FGV), no primeiro trimestre de 2023, aponta que a as mulheres negras ganham menos da metade (48%) que os homens brancos e não se equiparam com as mulheres brancas, pois rebem o equivalente a 62% do salário delas e estão atrás, até mesmo, dos homens negros, com salários 20% menores do que os deles.
Não bastasse a baixa remuneração e serem maioria no mercado informal, as mulheres negras despontam entre as maiores taxas de desemprego. Na contramão dessa realidade, o Brasil contabiliza maioria dos domicílios chefiados por mulheres (cerca de 51%) e entre elas, 56,5% são negras (DIEESE/2023).
As oportunidades para melhorar de vida também são mais restritas para as mulheres negras. O acesso ao nível superior de educação, mesmo com a melhora na última década, ainda se revela insuficiente para alterar tais indicadores.
Para falar sobre o tema, a Avante – Educação e Mobilização convidou, Lícia Maria de Lima Barbosa, mulher negra, soteropolitana, cientista social, mestra em Sociologia e doutora em Estudos Étnicos e Africanos.
Lícia Barbosa é professora na Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e atua, há quase trinta anos, com pesquisas referentes à raça, gênero, identidades e feminismos. Nascida e crescida na periferia de Salvador (BA), a socióloga vem de uma família heteronormativa, negra, de classe popular que, por conta da conquista de seu pai a um emprego na Petrobrás, pôde acessar uma educação de qualidade, chegar ao ensino superior, escapando da típica trajetória da mulher negra brasileira.
Formada politicamente no movimento católico de base marxista, no coletivo de mulheres do seu bairro, e no CEAFRO/ICEAFRO – Educação para a igualdade racial e de gênero (projeto de extensão do Centro de Estudos Afro da UFBA, formado eminentemente por mulheres negras); Lícia Barbosa acredita que essa relação com o social contribuiu para sua escolha pela Sociologia (UFBA); onde foi bolsista de iniciação científica e preparada para o mestrado. Logo após a conclusão desta etapa da pós-graduação, Lícia Barbosa ingressou na atividade docente universitária, onde está até hoje.
Lícia Barbosa precisou superar muitos desafios para permanecer e florescer na carreira acadêmica, entre os principais, racismo e sexismo institucional, que se tornaram chaves de leitura fundamentais para os seus objetos de investigação científica.
A socióloga está lançando o livro A Força das Ayabás – expressão de mulheres negras no Hip hop baiano, fruto da sua tese de doutorado. Com um currículo acadêmico robusto, Lícia Barbosa integra a produção coletiva de diversos livros e artigos científicos, todos sob a ótica de raça, gênero e sexualidade.
Confira a entrevista!
25 de julho foi o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. A data têm ajudado, realmente, a dar mais ênfase às pautas ligadas ao feminismo negro?
A data comemorativa é um caminho de visibilizar, sim. Mas temos que ir para mudanças mais profundas. Do ponto de vista da escola, por exemplo, do currículo, isso pode ser problemático, caso o foco seja apenas a data. Como fica o processo? E o currículo, enquanto um desenho que orienta as ações e o pensamento? Ele fica descolado. Do ponto de vista simbólico, eu acho importante, mas temos que pensar mesmo em mudanças de perspectiva, da forma de conceber, de fazer, dos princípios que estruturam e organizam os currículos escolares, por exemplo.
Há ganhos com as datas, mas eu prefiro pensar processos, no processo de visibilidade da luta das mulheres negras no Caribe e na América Latina. São mais de 30 anos de ativismo, de luta, de incidência em órgãos estratégicos fundamentais, na ONU, no governo brasileiro, para fazer alterar as situações de desigualdades concretas dessas mulheres. Eu acho que temos avançado. Temos uma Jurema Werneck [Diretora Executiva da Anistia Internacional no Brasil, ativista do campo dos direitos humanos, com foco em temas relacionados a raça, gênero e orientação sexual] na esteira nacional, uma Sônia Guajajara no ministério dos povos indígenas, professoras trans na graduação e na pós-graduação. Mesmo sendo poucas ainda, é um resultado de ganho, mas é preciso fazer mais incidência.
Na minha família dizem “você é a primeira doutora negra na família”, é uma alegria (sim!), mas é também um atraso ter apenas uma mulher negra com doutorado na família. Esse tipo de leitura deve fazer a gente se movimentar, ser mais incisivo, mais forte, não abrir mão dos movimentos.
São muitos séculos de dominação, precisamos cada vez mais cobrar a nossa participação em todos os lugares, em todos os aspectos, nos lugares de poder, de decisão. Há muita coisa ainda para se fazer, mas acho que estamos no caminho. Temos que ir para cima, não dá para brincar. As pessoas dizem “ah, tudo é racismo”, mas ele [o racismo] organiza tudo na nossa sociedade, então não dá para fechar os olhos e não ver que as relações sociais são marcadas por isso.
Como você avalia as políticas de acesso e permanência de estudantes negros na Universidade?
Primeiro, quero fazer essa referência – são mais de 10 anos de políticas de ações afirmativas na universidade, que foram importantíssimas. São imensos os impactos no campo de acesso e permanência de estudantes negros na universidade. Se a Universidade hoje tem outra cor, outra cara, em grande medida, resulta dessas políticas, e isso decorre dos movimentos negros. Se a gente tem avanço no campo das mulheres, isso é resultado do movimento de mulheres, dos feminismos.
Há equidade de oportunidades para as mulheres negras na universidade?
As maiores cargas estão presentes sobre a mulher, sobretudo, dentro de um casamento. Olhando a trajetória de jovens negras na universidade, isso é ampliado, amplificado. Eu, que ensino numa universidade do interior, vejo muito a realidade das mulheres do campo, e como esses padrões de gênero estão ainda muito marcados, impedindo e atrasando o acesso dessas mulheres e as suas trajetórias na universidade.
A questão do trabalho doméstico é um ícone. Para nós, mulheres negras, é uma imagem de controle. Afinal, as mulheres negras eram as amas de leite, as mucamas. Está no imaginário social que nascemos para servir. Se eu for fazer uma pesquisa, em termos de promoção funcional na universidade, quem está mais atrasada do ponto de vista da promoção profissional? As mulheres. Os homens fazem a promoção funcional [de carreira] muito mais rápido. Não é por acaso! Gênero é um fator determinante.
Eu consegui fazer minha tese porque eu tinha uma trabalhadora doméstica. Essa é uma grande discussão. As mulheres brancas de classe média fizeram, sim, uma revolução [Claro! Maravilha!]. Mas quem ficou em casa e quem fica ainda hoje tomando conta das crianças são as babás, são as mulheres negras. O trabalho doméstico é um reflexo dos processos de escravidão. As mulheres negras vistas como aquelas que são para servir, materialmente, e até sexualmente, estão nesse imaginário. Não dá mais pra congelarmos essa imagem de que mulher preta é só para limpar latrina da casa dos outros. Isso é muito sério, e nós, em graus diferenciados, estamos muito submetidas a esse tipo de imagem de controle.
A cobrança por produtividade é real na Universidade. Como as mulheres enfrentam essa questão?
A produção das desigualdades de gênero no campo da ciência ainda é imensa. Qual é o gênero da ciência? Historicamente, é um saber macho, branco, heterossexual, de classe alta. A ciência não está a reboque da sociedade e vice-versa. Essa desigualdade de gênero está presente na produção do conhecimento e na materialização das relações sociais.
Dentro do próprio CNPQ tem um movimento de mulheres cientistas trazendo essa discussão sobre a produção. Por que não produzimos, às vezes, no mesmo tempo hábil que os homens?
Se essa mulher for mãe e negra os desafios são ainda maiores. Quais seriam eles?
Quanto à discussão da maternidade, isso tem sido cada vez mais tema de pesquisas. Os desafios são imensos ainda, porque não temos uma política de equipamentos, como creches, de apoio às estudantes mães na universidade, e as jovens mães negras estão nesse contingente.
As pesquisas que tenho acompanhado falam dessa falta de suporte institucional; o não olhar para a questão da maternidade impede o acesso e a permanência dessas meninas na universidade. Isso é reflexo do sexismo estrutural que vivemos. A produção das desigualdades de gênero, por exemplo, no campo da ciência, ainda é imensa. Institucionalmente, não há apoio, creches, brinquedotecas, lugares para lidar com as crianças, alfabetizar.