Na tarde do dia 28 de novembro, famílias assistidas pelo projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos se reuniram no auditório da Escola Laboratório da Prefeitura de Salvador (ESCOLAB / Coutos), em torno de um assunto muito relevante e de impacto direto em seu cotidiano: a saúde. Se tratando de uma comunidade majoritariamente negra, população que, segundo dados do Ministério da Saúde, compõe 80% entre os que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) quando precisam de assistência, a importância do debate se torna ainda mais pronunciada. Por esse motivo, a proposta da conversa entre as famílias e as assistentes sociais do projeto trouxe para a ordem do dia a saúde da população negra.
“Acolhemos as famílias entregando material informativo como panfletos, cartilhas e adesivos referentes à saúde da população negra”, nos conta Evanice Tomaz, Assistente Social do Projeto, que aponta a necessidade constante de promover informação sobre o assunto, como forma de reduzir os atuais obstáculos no acesso. É em resposta a esses e outros problemas que envolvem desigualdades sociorraciais em saúde que, desde de 2009, está vigente no Brasil uma Política Nacional de Saúde da População Negra (PNSIPN). Por meio dessa política se objetiva desenvolver uma atenção integral à saúde dessa parcela que representa, de acordo com o IBGE, cerca de 54% da população nacional.
A emergência dessa atenção, responde ao reconhecimento da permanência de desigualdades étnico-raciais no acesso à saúde, bem como da institucionalização do racismo no sistema, levantando necessidades específicas à promoção de maior equidade no Sistema de Saúde. Do ponto de vista da atenção integral, se faz necessário considerar fatores que ultrapassem a dimensão meramente biológica, como aponta a PNSIPN.
Saúde, de uma perspectiva integral
Sendo a posição social e a identidade racial determinantes na condição de saúde de uma pessoa, o efeito do preconceito associado às instituições públicas, bem como às relações sociais, não pode ser ignorado. Pensar a pessoa em seu contexto se torna, assim, um imperativo para o exercício da cidadania e da garantia de direitos. Neste sentido, a exibição do curta Xadrez das Cores, de Marco Schiavon, que trata da permanência do racismo entranhado na sociedade brasileira, provocou um debate muito participativo entre as presentes. “Os relatos se concentraram em como elas se sentiram violentadas, e as dificuldades enfrentadas diante dos profissionais de saúde ao atendê-las”, nos disse Evanice Tomaz, que mediou o evento.
Segundo ela, a proposta teve como intenção estabelecer uma conversa sobre relações raciais como ponto de partida para a intervenção daquela tarde. Procede que, além de predisposições genéticas incidentes, como as que provocam a anemia falciforme e diabetes, por exemplo, a situação socioeconômica está diretamente associada ao acesso a serviços de saúde, conforme informações divulgadas pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, do Ministério da Saúde. Ainda segundo o Ministério, observando os agravantes raciais, as pessoas negras são as que mais sofrem quando precisam recorrer a cuidados com saúde.
É preciso, ainda, considerar a incidência de fatores externos, atuantes sobre as condições de vida e saúde de pessoas negras. Questões que envolvem violência, trabalho e saúde mental foram as mais recorrentes na fala das 19 mulheres presentes, sendo que metade delas atuam ou atuaram em serviços domésticos. É o caso de Patrícia, que estabeleceu uma relação com sua experiência pessoal, o filme e sua condição psicológica: “fui muito humilhada quando trabalhava. Eu tinha 16 anos e fui trabalhar porque engravidei e fui colocada para fora de casa. Tinha que trabalhar para me sustentar”, disse ela. Quando fala do tratamento que recebia no ambiente de trabalho, ela fala de momentos que a marcaram negativamente. “No dia que queimei a saia da patroa ela descontou no meu salário. Não recebi nada de dinheiro naquele mês, mas eu tinha que continuar porque precisava”, desabafa.
A conversa se encaminhou para a recorrência de situações racistas a que as mulheres negras estão sujeitas, dentro do ambiente de trabalho, sejam essas violências físicas ou psicológicas. É o caso de Rose, também empregada doméstica, que diz ter sofrido assédio sexual pelo antigo patrão.”larguei tudo, até o dinheiro, e fui embora”, disse.
Contra o racismo e pela equidade
Um modo integral de pensar os serviços públicos de saúde e os sujeitos que dele precisam, pressupõe que as condições de acesso e tratamento sejam asseguradas de forma igualitária entre todas as pessoas, sem acepção de classe, raça ou gênero. De encontro a isso, entretanto, Evanice Tomaz, ressalta que “os relatos das mulheres presentes denunciam as dificuldades diante dos profissionais de saúde ao atendê-las, assim como o difícil acesso ao Sistema, ou seja, o preconceito sofrido na efetivação dos seus direitos”, pontua a assistente social.
O caráter racial que envolve todas as políticas públicas, não somente as de saúde, tem antecedentes explicados pela história escravagista do Brasil e que acompanhou todos os momentos de transformação do País. O critério raça/cor, portanto, figura como indispensável no sentido de compreender esse fenômeno social, de modo a intervir sobre um cenário em que 37,8% da população adulta preta ou parda avaliaram sua saúde como regular, ruim ou muito ruim, contra 29,7% da população branca. Pretos ou pardos estavam 73,5% mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que brancos (38,7% dos pretos ou pardos contra 22,3% dos brancos), apontados por números oficiais.
As assimetrias atravessam todos os aspectos epidemiológicos verificados por órgãos públicos. Desde os cuidados pré-natais até os indicadores de causas externas como a violência. Os dados desse último indicador, por exemplo, demonstram que três jovens negros morre a cada hora, no Brasil. Em certa medida, um reflexo desse problema está pontuado pelos moradores daquela comunidade, quando a assistente social destaca que outra recorrente preocupação ali reside na violência e falta de segurança vivenciadas no bairro.
A Reunião com Famílias promovida na ESCOLAB é uma ação do projeto Estação Subúrbio, executado pela Avante – Educação e Mobilização Social, em parceria com a organização alemã Kindernothilfe (KNH), que atua pela redução da violência comunitária urbana, sobretudo as que afetam as crianças e adolescentes no Subúrbio Ferroviário de Salvador. A garantia de direitos e ampliação da cidadania orientam as atividades do Projeto, que procura aproximar a sociedade civil das políticas públicas a que ela tem necessidade.