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Resgatando a criança interior e o direito do Brincar em família

As famílias em contexto de vulnerabilidade social convivem com as mais adversas situações no dia a dia, ainda mais num contexto de pandemia, que agravou a fome, aumentou o desemprego, fragilizando a estrutura familiar, já bastante precarizada. Em meio a este cenário estão mães sobrecarregadas e estressadas, muitas delas as principais, senão únicas, responsáveis pela educação dos filhos. Uma situação que intensifica e dificulta a resolução de conflitos com seus filhos. Tendo o brincar como principal estratégia de combate à violência, doméstica e comunitária, o projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos (Avante – Educação e Mobilização Social e KNH) reuniu um grupo de mães da comunidade para uma formação vivencial sobre o direito do brincar, os contextos e situações de violência contra a criança. 

O encontro aconteceu entre os dias 18 de agosto e 08 de setembro com o intuito de defender esse direito e colaborar para a promoção de um ambiente familiar mais saudável. Uma reflexão que vem sendo incentivada, com avanços, ao longo dos cinco anos de atuação do Projeto na Ocupação Quilombo do Paraíso, um assentamento do Movimento dos Sem Teto de Salvador (BA) no Subúrbio Ferroviário de Salvador (BA). 

A programação do encontro envolveu momentos para respirar e brincar, além do compartilhamento de informações para aprofundamento de conhecimentos sobre os temas: violências, família, estratégias de prevenção da violência doméstica e direito ao brincar. “Nesse sentido, as vivências possibilitaram integrar o conhecimento a estratégias e ferramentas que apoiem a família no cotidiano para garantir o respeito ao tempo e à escuta da criança, bem como o direito ao brincar”, explica Ana Marcilio, consultora associada da Avante e coordenadora do Projeto. 

De acordo com Ana Marcilio, a proposta nasceu de uma demanda da comunidade. “Inicialmente, as próprias crianças disseram que era preciso a gente conversar com as famílias para que eles conseguissem avançar na capacidade de resolver conflitos pelo diálogo, sem violência. Já as famílias demandavam por momentos de alegria e prazer, como os que as crianças estavam tendo, já que em suas infâncias não tiveram essa oportunidade. Também apontavam a necessidade de mais diálogo, escuta, e conhecimento”, disse. Ela reforça que para a intervenção é preciso o apoio das famílias para a consolidação das mudanças em seus comportamentos. Além disso, os momentos de brincar são potencialmente estratégicos na promoção da leveza, da escuta e de uma interação mais harmoniosa quando compreendido e acolhido pelos familiares. 

Sensibilizando 

Todos nós já fomos crianças um dia, mas nem todos tivemos a oportunidade de vivenciar a brincadeira na infância. Para estes, a compreensão do brincar como um direito e sua importância para o desenvolvimento das crianças fica bem distante. “Grande parte das mulheres relatam a ausência do brincar na infância. Muito em função da necessidade de trabalhar e ajudar os pais no sustento da casa, ou nos cuidados com os irmãos mais novos. Algumas tiveram filhos muito cedo”, conta Ana Marcilio. Evanice Tomaz, assistente social do Projeto, reforçou, junto ao grupo, que não são apenas os familiares que devem garantir o direito ao brincar, mas também a escola e o Estado. “Este é o conhecimento que, muitas vezes, as famílias não têm”, disse a assistente social.

Para Camila Souza, educadora brincante do Estação Subúrbio, esse tipo de formação, que utiliza a linguagem da ludicidade, é muito interessante, pois promove uma reflexão e mostra o quanto a criança precisa disso para se desenvolver e não garantir esse momento de brincar é também uma violência. “As assistentes sociais trazem a discussão sobre as leis e a assistência social. A gente faz as dinâmicas com as mães, e reflete sobre isso”, conta a educadora. Zé Diego, também educador brincante do Projeto, reforça: “as brincadeiras não são aleatórias e tem a ver com algum tema a ser trabalhado no dia. A brincadeira de tirar do sério, na qual um fica de frente para o outro e o primeiro que der risada, sai, por exemplo. A partir dessa dinâmica, a gente pergunta: o que é que te tira do sério? Então, vamos desenvolvendo como acontecem as situações com as crianças e com os adultos. A brincadeira evolui para um bate papo, depois amarra com a parte das leis”, explica Zé Diego.

No encontro, as mães relatam ter, hoje, uma maior capacidade de escuta e uma maior compreensão do brincar como um direito, e sua importância para as crianças. Ana Maria dos Santos de Jesus, mãe de Dedimar, de 6 anos, disse que reconhecer isso mudou sua forma de resolver as coisas com seu filho. “Até pipa eu fiz essa semana. A violência contra as crianças é uma frustração pessoal”. 

Para Ana Marcílio as formações vêm ajudando para que exista um maior esforço e compromisso na direção de garantir que a brincadeira aconteça de forma autônoma na comunidade, sem a necessidade da presença constante dos adultos.

Ressignificando conceitos

O encontro também promoveu uma reflexão sobre violência doméstica e legislação, e os impactos dessa relação no desenvolvimento dos filhos. Para tanto, foram abordados: a Lei Menino Bernardo (Lei nº 13.010), que trata sobre o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante; a Constituição Federal e o que ela prevê acerca das políticas públicas no que tange às famílias; e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). “Elas falam da importância do conhecimento, porque liberta, permitindo uma mudança na forma de agir com seus filhos e as outras pessoas”, explica Ana Cecília Sacramento, assistente social do Estação Subúrbio.
Ana Marcilio conta que a ação tem ajudado as mães na relação com elas mesmas e com seus filhos, na perspectiva da redução da violência doméstica, impactando na violência comunitária. “As participantes relatam que conseguem antecipar o rompante da violência, escutar mais os filhos e filhas, separar o que é estresse do dia a dia e a relação com as crianças. Uma mudança interessante é que elas conseguem pedir desculpas para os filhos e filhas quando sentem que saíram da linha, perderam a razão”, disse a coordenadora do Estação Subúrbio.

Os diálogos coletivos têm possibilitado que as mães comecem a fazer relação entre o que vivenciaram na infância, os desafios que ainda vivenciam hoje na vida adulta, e o que reproduzem no ciclo de violências e violações de direitos que atinge as crianças. O resultado é um ambiente colaborativo para uma mudança de postura. “Outro ponto interessante é que a relação entre elas mudou, existe mais sororidade, mais solidariedade. Quando, por exemplo, uma mãe ‘estoura’ com o filho/a, a outra lembra: respire, escute… Elas também se sentem mais confiantes para conversar sobre esses temas abordados”, disse Ana Marcilio.

Rebobinando…

Conscientizar as famílias sobre a importância do brincar para seus filhos faz parte da estratégia do Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos para a redução da violência comunitária. Desde 2017, primeiro ano do Projeto na comunidade, são realizados diálogos sobre a importância do brincar para a saúde das crianças e para a diminuição da violência comunitária. O primeiro foi o Encontro de Ludicidade”.
Além disso, ao final de cada ano, é realizado um encontro de devolutiva do Projeto na Ocupação, por meio de roda de diálogo com famílias e lideranças, com as crianças participando do planejamento dessas devolutivas. “Logo no primeiro ano, houve o reconhecimento de que o brincar não é um direito garantido na infância brasileira, que elas mesmas não tiveram essas experiências quando crianças”, explica Ana Marcílio. Também ficou constatada a necessidade de maior participação dos adultos para que houvesse menos violência entre as crianças e melhores resultados no Projeto. “Assim, em 2019, nós lançamos as Brincadeiras Intergeracionais, que era um dia de brincadeira na comunidade envolvendo as famílias, jogamos baleado, pulamos corda, levamos teatro, palhaços e música para a comunidade, por exemplo”.

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