Flicts, uma narrativa de inclusão

Ziraldo nos deixou às vésperas do Dia Nacional do Livro Infantil. A data, celebrada desde 2002, é uma oportunidade para discutirmos a importância da leitura para o desenvolvimento do indivíduo, e, consequentemente, da sociedade. 

A imersão nas páginas dos livros, independente do gênero escolhido, amplia a nossa capacidade de ler a realidade, o outro e a nós mesmos, como nos possibilita, ainda, sonhar outros mundos e, a partir da imaginação, criar e mobilizar outras realidades possíveis – mais solidárias, inclusivas e pacíficas.

Em menção à despedida de Ziraldo, a Avante – Educação e Mobilização Social, engajada com o ideal de manifestar um mundo mais acolhedor, em especial, para as crianças, sugere como dica de leitura deste abril, Flicts – uma obra-prima da literatura infantil, publicado em 1969, que, em tom poético, nos apresenta a aflição de quem não se sente pertencente.

“Era uma vez uma cor muito rara e muito triste que se chamava Flicts”, é assim que Ziraldo começa a saga solitária de seu protagonista por um lugar no mundo. 

A história é uma excelente estratégia para a discussão das diferenças no contexto escolar, afinal, quem nunca se sentiu feio, triste ou excluído em algum momento da infância? É impossível que o leitor de Flicts não se identifique com algum traço de sua incompreendida e deslocada existência.

Flicts é uma narrativa de inclusão. Na aflição por encontrar lugar, a cor rara e triste saiu em busca de reconhecimento, de um olhar empático que o acolhesse em seu aspecto difuso e confuso. Flicts pode ser metáfora para todos aqueles que sentem diferentes, atípicos, divergentes, inaptos e não aceitos. Quantas crianças não se sentem como Flicts no ambiente escolar, na própria família e em outros espaços sociais?

Flicts não era forte como o vermelho, reluzente como o amarelo ou pacífico como o azul, era apenas feio, frágil e aflito. “Tudo no mundo tem cor… mas não existe nada no mundo que seja Flicts”. Nem a sua solidão era suficiente para caracterizá-lo.

Aliás, a solidão é, quase sempre, a única parceira dos invisibilizados. Perguntemos a uma criança preta, indígena, com deficiência visual, motora ou intelectual como ela se sente. Possivelmente, num mundo ainda repleto de barreiras, conseguiríamos ler muito do sentimento de Flicts em seu relato. 

Flicts parecia não ter função, propósito. Ao narrar sua jornada, Ziraldo nos conduz a questionarmos a distorção do nosso olhar. A partir do personagem incolor, aos leitores mais atentos, o cartunista suscita problematizações mais profundas, afinal, como nos permitimos ler os seres humanos a partir de sua “funcionalidade”? 

Quando o violeta do arco-íris diz violentamente que Flicts quebraria a ordem natural das coisas ao romper o padrão das sete cores que configuram o arco celeste, Ziraldo nos provoca a pensar sobre os parâmetros que estabelecemos em nosso mundo, que, na verdade, são apenas barreira para a compreensão do mundo em toda a sua diversidade.

Flicts, não aceito aqui, subiu, subiu, até sumir. Ziraldo, gentil e complacente, escreve para ele o desfecho mais lindo e inusitado. Flicts se encontrou na lua, nesse satélite natural do nosso planeta, que, dependendo da sua relação com o sol, assume cores diversas. 

Segundo Ziraldo, de pertinho, bem pertinho, “a lua é flicts”. Verdade conhecida apenas pelos astronautas, talvez porque esses sejam aqueles que, quando crianças, sonharam viajar para o mundo da lua, e conseguiram.

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