ENTREVISTA: Reconhecer o racismo no interior da escola é o primeiro passo

Por Carla Aragão 

Mille Fernandes ‘Makyesi’, conselheira consultiva da Avante – Educação e Mobilização Social e ativista do Movimento Kilombola da Bahia, é precisa em suas opiniões nesta entrevista. Quando questionada sobre o combate ao racismo, especialmente na escolas, ela aponta duas grandes necessidades: primeiro, reconhecer a existência do racismo no interior da escola, e, em segundo, promover uma formação docente crítica, “que perpasse sobre questões nunca antes abordadas, com o objetivo de desconstruir a história única contada e recontada sobre os povos africanos e seus descendentes”. 

Mille, que é também Doutora em Educação e Contemporaneidade (PPGEduc/UNEB) e tem pós-doutorado em Educação (IEA/USP), defende a reavaliação urgente dos cursos de licenciaturas, incluindo Educação para as Relações Étnico-raciais, como também a ampliação de cursos de aperfeiçoamento, que contemplem esta discussão. Uma perspectiva que vai de encontro à Resolução 04/2023 do Conselho Acadêmico da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que tornou obrigatória a oferta de disciplinas sobre História e Cultura Afro-brasileira, Africana e dos povos Indígenas em todas as graduações até 2025.

“Muitos professores e professoras negros e negras, além de desconhecerem a História da África e Afrodiaspórica, tiveram seus corpos marcados por uma educação extremamente racista e não conseguem abordar determinadas temáticas”, explica Mille, que conhece esta necessidade de perto e reúne experiências em pesquisas e elaboração de Diretrizes Curriculares para Educação Escolar Kilombola. Ela foi a relatora do Documento Curricular Referencial da Bahia do Ensino Médio na Modalidade de Educação Escolar Kilombola. 

Que tal conferir o nosso papo com ela e se aprofundar neste rico debate?

Avante – Como promover a perspectiva de uma educação antirracista entre as professoras e professores?

Mille Fernandes – Penso que precisamos conhecer mais sobre as nossas origens e valorizá-las. Sem este conhecimento torna-se impossível que as professoras e professores consigam acionar suas consciências políticas e elaborar planos de ação didático-pedagógica mais efetivos utilizando os saberes existentes em cada comunidade.

Avante – Como a educação antirracista pode contribuir para uma escola mais acolhedora e segura? 

Mille Fernandes – O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e as matulas [herança malditas] deste cruel processo em nossa história é o racismo que continua devastando vidas negras até hoje na sociedade. Portanto, a educação antirracista consiste em ensinar desde cedo as crianças sobre o respeito às diversidades, às religiosidades, a valorização de sua ancestralidade de origem africana, possibilitando que elas e eles consigam compreender que também são africanas nascidas na diáspora. 

Avante – Qual a importância de promover o respeito às diversidades na Educação Infantil?

Mille Fernandes – É importante que crianças negras criem uma imagem positiva do que é ser negro e negra, que conheçam as histórias dos seus antepassados e que se orgulhem de suas origens, de sua cor de pele, seus cabelos. Uma estratégia política de conscientização para romper com as histórias inventadas sobre a população negra como escravizada, dando vez e voz a história do povo negro antes da diáspora forçada. Uma forma de poder acabar com as discriminações e qualquer tipo de preconceito.

Avante – Como promover a perspectiva de uma educação antirracista entre as 

professoras e os professores?

Mille Fernandes – Penso que precisamos conhecer mais sobre as nossas origens e valorizá-las. Sem este conhecimento torna-se impossível que as professoras e os professores consigam acionar suas consciências políticas e elaborar planos de ação didático-pedagógica mais efetivos utilizando os saberes existentes em cada comunidade.

Avante – A violência racial também está dentro das escolas. Como podemos enfrentá-las? 

Mille Fernandes – Primeiro passo, seria reconhecer que existe o racismo no interior da escola, pois precisamos discutir e trabalhar individual e coletivamente com o corpo escolar de que maneira a herança africana é parte de suas vidas. Digo isto, porque muitos professores e professoras negros e negras, além de desconhecerem a História da África e Afrodiaspórica, tiveram seus corpos marcados por uma educação extremamente racista e não conseguem abordar determinadas temáticas porque lhes causa dor. Segundo passo, há uma necessidade de formação docente crítica, que perpassa sobre questões nunca antes abordadas, com o objetivo de desconstruir a história única contada e recontada sobre os povos africanos e seus descendentes. 

Por outro, as formações docentes contribuiriam para que professores e professoras pudessem compreender como a história e a cultura africana se faz presente em nosso cotidiano, a exemplo de brincadeiras, histórias, jogos, contos, músicas, etc… e utilizá-la dentro do contexto escolar nas diversas áreas, desde a Educação Básica, não cabendo somente à disciplina de História a responsabilidade de implementar a Lei 10.639/2003.

Avante – Pesquisa realizada por Instituto Alana e Geledés – Instituto da Mulher Negra revela que apenas 29% dos municípios brasileiros realizam ações consistentes para implementação da Lei 10.639 nas escolas. A que você atribui essa morosidade na implementação e que impacto isso causa?

Mille Fernandes – Como informei na pergunta anterior, penso que é necessário e urgente, uma formação docente. Por um lado, reavaliar os cursos de licenciaturas abrangendo Educação para as Relações Étnico-raciais, como também ampliar os cursos de aperfeiçoamento que contemplem esta discussão a partir de epistemologias decoloniais, subvertendo a lógica cartesiana dos modelos de formações docentes que temos visto. As formações docentes com um viés “contracolonial” contribuíram para que professores e professoras pudessem compreender sua história e as histórias dos outros, de forma crítica e positiva, principalmente entender que a história e cultura africana é a história de constituição do mundo.

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