
“Eu fiquei muito encantada com a recepção do grupo e em perceber a literatura negra infantil comprometida com a autoestima e empoderamento das crianças funcionando naquele momento em que eu contava a história”, compartilhou Anna Cristina de Souza (Kuia), mobilizadora brincante no projeto Foco nas Infâncias: defesa de direitos na Baixa do tubo do Coqueirinho, que usou a contação de histórias para afirmar a potência de abordagens afrocêntricas.
Para iniciar as crianças em debates necessários como o racismo, as desigualdades sociais, os direitos humanos e outras questões sociopolíticas, contar uma história pode ser propositivo e assertivo.
Crianças são sujeitos de direitos e não estão à margem dos fenômenos sociais. Por essa razão, é importante e necessário que elas possam compreender aspectos que constituem e atravessam suas realidades para participarem efetivamente da sua mudança.
Embora haja consenso entre pesquisadores e profissionais da Educação sobre os benefícios da contação de histórias para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social das crianças, a tarefa de apresentá-las novas narrativas e comunicá-las temáticas mais complexas está, majoritariamente, a cargo das escolas.
Para além dos espaços escolares, no entanto, a contação de histórias é uma via importante de diálogo e escuta. Um recurso fundamental para ampliar o repertório linguístico e cultural das crianças, potencializar aprendizagens e criatividades e conscientizá-las para o exercício da cidadania.
Contar para comunicar
As histórias infantis possibilitam às crianças conhecerem narrativas plurais, diferentes das (re) produzidas pelas mídias ou mesmo por seus livros didáticos.
Contar uma história é uma forma de desconstruir lógicas racistas, capacitistas, LGBTfóbicas, sexistas e etaristas. É um mecanismo potente para diálogos sobre ancestralidade, memória, respeito, gênero, entre outros temas.
“Tratar o racismo com as crianças é muito pesado, especialmente com crianças pretas e da periferia. Quem diz isso são as pesquisas de educadoras afrocêntricas que eu acompanho”, afirma Kuia, que trabalha com esse público no Projeto.
Segundo a mobilizadora brincante, que utiliza a praça pública do Sucuiú para contar histórias e brincar com as crianças, “o foco não deve ser trabalhar o racismo ou o antirracismo, o foco é trabalhar a afrocentricidade; falar sobre os reinos africanos, as rainhas, os penteados como coroas, e trazer que todo o desenvolvimento artístico, científico e intelectual nasceu no continente africano”.
Para atingir esse objetivo, Kuia conta que levou o livro Abayomi – O encontro precioso, da autora soteropolitana Nini Kemba Náiyò. A narrativa que conta a história da artesã Lena Martins, criadora da boneca Abayomi, positiva a negritude.
Para as crianças, “é muito importante ter essa imagem afirmativa sobre si mesmo, sobre pessoas pretas e sobre sua pele. As crianças ficaram encantadas com as ilustrações e se identificaram com o fenótipo das personagens”, destacou Kuia.
De acordo com Edinei Garzedin, professora, psicopedagoga e mestre em Educação, “abordar diferentes temáticas a partir da contação de histórias faz com que as crianças se aproximem dos temas através de pessoas em quem elas confiam – seus pais, professores e mediadores”.
A contação de história, reforça a professora Edinei, pode aproximar as crianças de diferentes culturas e etnias, e inseri-las em conversas necessárias sobre respeito, limite, preconceito e outras temáticas. “As histórias ajudam as crianças a imaginar esses cenários e a fazer suas próprias elaborações. Então, é um recurso que oferece inúmeras possibilidades. E ainda tem aquela coisa gostosa da roda”, ressaltou.
Estratégias
A contação de histórias é também um dispositivo que auxilia os adultos a entrarem no universo das crianças. E quando o propósito é atraí-las para um bate-papo mais complexo, as estratégias são diversas.
Para prender a atenção das crianças da Baixa do Tubo, um dos recursos utilizados por Kuia é um brinquedo de madeira chamado traca-traca, conhecido também como brinquedo das mil formas. “Eu vou contando a história e fazendo as formas com ele. Fazendo uma casinha, um cachorro, uma cachoeira, um peixe. Quando eu levo os livros, as crianças também ficam livres para olhar e pegar, e aquelas que não sabem ler vão folheando, vendo as imagens e contando as histórias que vão imaginando”.
Como compartilha Edinei Garzedin, “quando a gente conta uma história, as crianças conseguem elevar a imaginação num nível absurdo”.
Com décadas de experiência na Educação formal, a professora contou que, certa vez, ao perceber seus estudantes desmotivados com a leitura, optou por seguir a estratégia da narradora dos contos de As Mil e Uma Noites. “Eu fiz uso desse livro. E aí, eu fazia exatamente como Sherazade. Começava a contar uma história e deixava o final para o dia seguinte. Então, eles já chegavam no outro dia com a expectativa do final da história”.
Ler e brincar
A contação de histórias é o primeiro convite para a leitura na infância e deve ser realizada dentro e fora da escola, sempre que houver alguém disposto a contar e ouvidos próximos para ouvir.
Para Edinei, o hábito de contar histórias em casa, além de fortalecer os vínculos afetivos e familiares, fomenta nas crianças o hábito da leitura.
Longe das quatro paredes da sala de aula ou de suas casas, as crianças também podem desfrutar da contação de história em espaços como bibliotecas, centros culturais, espaços comunitários ou praças públicas. Essas experiências podem ser cultivadas de forma coletiva e bastante divertida.
Na Praça do Sucuiú, “a contação de história é um momento do brincar livre”, afirma Kuia. “A gente não está na escola, está nesse ambiente informal de educação que é a praça, que é o espaço do brincar livre, e aí a contação de história também ocupa esse espaço”, conclui a mobilizadora.
A Avante – Educação e Mobilização Social tem um histórico relevante de iniciativas voltadas à leitura, com projetos, mobilização e formação de mediadores de leitura, além do apoio à fundação e sustentabilidade de bibliotecas comunitárias.
Em 2008, a organização lançou a Rede EMredando Leituras, que reúne instituições e bibliotecas de diferentes lugares da capital baiana, entre elas, as Bibliotecas Comunitárias do Calabar (Calabar), Ítalo (Cajazeiras IV), Sete de Abril (Sete de Abril), Maria Rita Almeida de Andrade (Cidade Nova), Clementina de Jesus (Uruguai), Paulo Freire (Escada) e Ilha Amarela/Parque São Bartolomeu (Ilha Amarela).
O projeto Foco nas Infâncias: defesa de direitos na Baixa do tubo do Coqueirinho, que tem iniciado atividades de fomento à leitura na praça do Sucuiú, é realizado pela Avante, em parceria com a Kindernothilfe (KNH).