Brasil e Alemanha: análise situacional dos direitos das crianças

Defender direitos, empoderar comunidades, disseminar o brincar como estratégia de enfrentamento à violência, diálogo e troca de experiências. Conectadas por esses objetivos, duas instituições, de dois países, realizaram um diagnóstico participativo nas comunidades  Baixa do Tubo e Sucuiú, no bairro Alto do Coqueirinho, em Salvador (BA), para desenvolvimento de uma proposta de intervenção dialogada com a comunidade. 

Em parceria com a Kindernothilfe (KNH)/Alemanha, a Avante – Educação e Mobilização Social/Brasil e Roda de Aprendizagem promoveram momentos de diálogo com os moradores de ambas as comunidades, a fim de compreender a realidade dos territórios e identificar as condições necessárias para que as crianças e adolescentes que ali vivem possam usufruir de seus direitos. Ao todo, 190 moradores e profissionais de instituições públicas e privadas, que atuam nas comunidades foram mobilizados e ouvidos para a construção do diagnóstico, sendo 44 crianças e adolescentes de 4 a 12 anos, 74 na faixa etária de 13 a 16 anos, 47 adultos e 25 instituições. 

No dia 07 de outubro de 2022, representantes da KNH estiveram na sede da Avante para conhecer o resultado do trabalho realizado em campo. Participaram do encontro, por parte da KNH Brasil,  Johannes Miksch, diretor para o Brasil, Célia Schuetti, gerente de programas para o Brasil, e Christiane Rezende, coordenadora nacional / Regional Sudeste, Centro-Oeste e estado da Bahia, e representantes das diretorias estratégica, comunicação e financeira-administrativa da Avante, e equipe do projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos, executado por cinco anos na Ocupação Quilombo do Paraíso, também fruto da parceria entre a Avante e a KNH. 

Retrato

As comunidades Baixa do Tubo e Sucuiú são marcadas pelas discrepâncias sociais que tanto afetam o Brasil. Estão localizadas entre condomínios luxuosos e áreas dominadas pelo tráfico, gerando uma intensa opressão das forças do Estado, sob o pretexto da “segurança”. Apesar de arborizadas, as comunidades carecem de espaços para brincar, devido a violência imperante no território. Para a realização da pesquisa territorial e para as escutas realizadas, duas perguntas foram tomadas como fio condutor: quais são as capacidades dos detentores de direitos e deveres no nível local?; e quais são as causas das violações de direitos das crianças e adolescentes? 

Para as escutas feitas nas comunidades, foi utilizada uma metodologia que traz a ludicidade e o acolhimento como princípios, em especial com as crianças e adolescentes. Ao longo das atividades surgiram falas marcadas pela insegurança e o medo: “polícia dá insegurança”; “chega atirando, entra nas casas sem mandato e sai batendo em todo mundo”; “eu deixo meu filho trancado em casa, às vezes, para poder ir trabalhar”; “a gente usa roupa masculina e folgada porque o assédio dos homens é menor” (adolescentes). 

A proteção, por sua vez, foi reconhecida como vinda da família, da igreja, do hospital; ou “das pessoas na rua e ninguém maltratando”. Em alguns grupos, crianças e adolescentes não reconheceram seus direitos e não se reconheceram negras, apontando para um racismo estrutural muito presente.  

A dureza nas falas também surgiu em temas como: lazer – “tem a ver com o paraíso”; “sair para parques, praças, praia”; “ficar de quebrada”; “não tem aqui na rua”. Sobre a Liberdade – “é o que a gente não tem na vida”. As regras – “O professor quer mandar na gente”. O castigo – “chinelo, dedo apontando”, “o que os pais fazem toda hora”; “uma semana de casa para o colégio”; “ficar sem celular”; “eu não tenho paciência, já vou para o cacete”.

As escutas realizadas em campo com crianças, adolescentes, mães, pais e trabalhadores de instituições públicas e privadas, sinalizam que, entre os direitos que as comunidades da Baixa do Tubo e do Sucuiú reconhecem como mais violados estão: o direito à não discriminação – racial, de gênero e religiosa; direito ao lazer, ao brincar, praticar esportes e divertir-se; direito à sobrevivência e ao desenvolvimento; e o direito à participação. Os dados levantados serão a base para mais um diálogo com a comunidade no dia 22 de outubro, dessa vez com o intuito de validar os dados ou fazer os ajustes necessários a partir do reconhecimento dos moradores de sua própria realidade. Só após este novo encontro, Avante e KNH irão partir para o desenho de uma proposta de intervenção de cinco anos na comunidade. 

A apresentação da Avante, seguida da apresentação da metodologia do diagnóstico e dos dados encontrados, mobilizaram a equipe da KNH. Johannes Miksch, diretor para o Brasil, disse ter ficado emocionado pela completude dos dados apresentados, pela metodologia utilizada em campo e percebeu que a parceria entre a Avante e a Roda de Aprendizagem trouxe força e aprofundamento do olhar e na análise das investigações.

Curiosa com tudo o que escutou e viu, Célia Schuetti, gerente de programas da KNH  para o Brasil, perguntou se o conceito de violência urbana havia mudado a partir daquela experiência, diante daquele caldo de violência vindo de todos os lados: religiosa, de raça, violência doméstica, social, insegurança alimentar e, em especial, do Estado. Ana Marcilio, consultora associada, diretora do administrativo – financeiro da Avante e especialista nos direitos das crianças, que também atuou como coordenadora do projeto Estação Subúrbio, trouxe a percepção do campo sobre o tema. “É complicado fragmentar a violência urbana, que se concretiza na violência comunitária que, por sua vez, repercute todos os tipos de violência o tempo inteiro”, disse. Christiane Sampaio, coordenadora do projeto de realização do diagnóstico participativo na Baixa do Tubo e no Sucuiú, lembrou que dentre todas as violências presentes, “a do Estado é a mão mais pesada”.

A experiência

Avante e KNH já percorreram esse caminho juntas anteriormente, a partir de experiência semelhante na comunidade da Ocupação Quilombo do Paraíso, no Subúrbio Ferroviário, com o projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos. Após diagnóstico inicial, a parceria, estendida à comunidade por meio do Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB), possibilitou uma atuação de cinco anos na comunidade e na ESCOLAB – escola da prefeitura, que atende ao entorno, descobrindo, por exemplo, que boa parte das crianças e adolescentes da Ocupação não tinham acesso à escola devido a direitos básicos fundamentais não garantidos, como a regularização dos documentos. 

Nesse período, o brincar se consolidou como um poderoso instrumento de enfrentamento à violência comunitária, e por meio do atendimento às crianças, as famílias, em especial as mães (em sua maioria chefes de família) foram orientadas na busca por seus direitos, recebendo acolhimento e sendo provocadas ao reconhecimento da importância do autocuidado para cuidar, garantindo direitos, em especial o direito à proteção. Com o tempo e o fortalecimento da parceria com a comunidade, os homens foram se aproximando, colaborando com a garantia dos espaços do brincar das crianças, também em busca de autocuidado e se abrindo para o diálogo. 

Mesmo a Ocupação Quilombo do Paraíso não sendo uma comunidade sob forte opressão do poder do Estado (se comparada às da Baixa do Tubo e Sucuiú) – cuja ausência também gera forte violação de direitos – a equipe do projeto percebeu o aumento da violência, em especial pela intensificação da presença do tráfico. Os educadores e assistentes sociais do projeto Estação Subúrbio- nos trilhos do direito, que mantinham contato mais frequente com a comunidade, vivenciaram as tensões oriundas deste cenário, em paralelo às conquistas junto aos moradores. 

A Avante atravessou a pandemia de mãos dadas com os moradores, não deixando a peteca do brincar cair, buscando apoio, dialogando e partilhando os desafios. As semeaduras são percebidas numa comunidade mais brincante, que pôde refletir suas raízes fincadas na infância e atuar na mudança de padrões e comportamentos, buscando uma educação mais dialogada, rompendo o ciclo de violência que se perpetua historicamente.

Diagnóstico

O diagnóstico participativo é sempre o primeiro passo da Avante para chegar em uma comunidade. Escutar os moradores, compreender a realidade a partir de suas perspectivas, trazer à tona o que possa estar encoberto pela opressão social, econômica, racial, religiosa e até mesmo política, buscando o envolvimento efetivo e o engajamento na luta pela causa defendida. O que implica no compartilhamento de responsabilidades na construção de caminhos para o alcance dos resultados almejados, além de vontade e disposição para vencer desafios e barreiras em prol dos objetivos pretendidos.

Método 

Nas comunidades da Baixa do Tubo e do Sucuiú, em Salvador, as equipes da Avante – Educação e Mobilização Social e da Roda de Aprendizagem tomaram como referência metodológica para o diagnóstico o Guia para Análise Situacional dos Direitos da Criança e dos Adolescentes, da KNH. O documento orienta o passo a passo para a realização do diagnóstico participativo denominado para a Análise Situacional dos Direitos da Criança e dos Adolescentes (ASDCA). 

A metodologia utilizada pela parceria alemã é ponto de partida para o desenho de projetos de intervenção social baseados numa programação dos direitos da criança e do adolescente. 

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