Arquitetura, natureza e cultura: como “desemparedar” crianças

A grama é sintética, o brinquedo é de plástico, o jogo é virtual, o ar é condicionado, o bicho é nojento, sair de casa é um perigo! Essa lógica é reproduzida pelas mesmas pessoas que constroem cidades de concreto, que dão mais valor a estacionamentos que a parques. As crianças estão, cada vez mais, crescendo entre paredes (ou seria definhando?) engaioladas como passarinho sem chance de defesa e de conhecerem o mundo. O webinário “A criança e a cidade”, disponível no canal no Youtube da Avante – Educação e Mobilização Social, mostra que na natureza e na cultura estão saídas interessantes para “desemparedar” as crianças de hoje, física e mentalmente, contribuindo não só para sua saúde, mas também para a compreensão de seu lugar no mundo, de seu papel diante da sociedade e seus desafios.

Este é o terceiro webinário de uma série que faz parte da programação de atividades do projeto Primeira Infância Cidadã (PIC) realizado pela Avante em parceria com a Petrobras, por meio do Programa Petrobras Socioambiental, como parte da Iniciativa Territórios pela Primeira Infância. O PIC busca priorizar a primeira infância na agenda municipal e apoiar os municípios no fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos (SGD), especialmente no que se refere à promoção e defesa dos direitos da criança. No evento, Mônica Samia, Doutora em Educação e consultora associada da Avante, recebeu a arquiteta e urbanista Bia Goulart, mestre pela UFRJ, representante do Brasil no grupo arquitetura e infância, da União Internacional de Arquitetos – UIA. Apresentado pela vice-presidente da Avante, a psicóloga Ana Luiza Buratto, e coordenadora do projeto Primeira Infância Cidadã (PIC), o evento contou com a presença virtual de educadores de várias partes do Brasil, e com uma conversa fluida em ritmo e imagens. 

Por uma arquitetura de diálogos e participação

As cidades podem e devem ser pensadas com e para as crianças. É preciso construir espaços públicos, parques e locais que permitam às crianças brincar e interagir, associados a serviços públicos de qualidade, que impactem no desenvolvimento infantil de forma positiva. As estudiosas abordaram durante o encontro a importância da escuta da criança por gestores públicos, atores sociais e sociedade civil para a construção de cidades amigáveis para a infância e que permitam seu crescimento saudável em diferentes etapas de vida. “A cidade não prevê Manoel de Barros, não prevê o alicate de veludo. O modus operandi do código de obras, do plano diretor, não prevê o inusitado”, alertou Bia Goulart ao destacar que o método de construção das cidades tem que ser integrado, dialogar com a cultura e com os biomas, e ser compartilhado entre todos. “É preciso garantir o direito de viver melhor (…) é preciso desemparedar as crianças”, afirmou Bia.

Para a arquiteta, “o lugar onde a gente vive deveria ser uma matéria em todas as escolas, para todos discutirem inter e transdisciplinarmente o que está sendo feito no nosso espaço, na nossa cidade, na nossa escola, através de uma metodologia de escuta permanente”, disse Bia, após citar o exemplo do Parque Augusta como lugar de luta na capital paulista, recente conquista da comunidade, consciente do papel do território para as famílias locais, em contraponto ao que ela já viu em uma certa cidade – um parque virar estacionamento por decisão da própria comunidade.

Siga a natureza e a cultura

Recuperar saberes de ser, de viver e de estar com o outro no seu território, em seu tempo. Esse é o resgate necessário para ajudar as crianças a adquirirem consciência e vínculo com o lugar onde vivem. Conhecer as diferentes culturas, como elas vivem e sobrevivem ao tempo, através das pessoas e dos lugares. “Trazer para o convívio das crianças elementos de vida, que pulsam na cidade, na natureza e nos elementos da cultura”, é para Mônica Samia o que representa uma cultura da infância, na recuperação de territórios perdidos na natureza e na valorização do que temos. A consultora associada da Avante lembrou que a rua deixou de ser um lugar de encontro para ser um lugar de passagem, sempre associada ao perigo ou à sujeira, mas o contato com a natureza é curativo, restaurador, permite-nos pensar, sentir, agir. 

Vídeos emocionantes, cheios de significados e ideias entrelaçam-se na conversa com depoimentos de educadores refletindo sobre a prática, e de crianças experienciando os territórios, os materiais, as descobertas. Para que lugares as famílias de hoje levam suas crianças para brincar? Estamos ouvindo nossas crianças sobre o que elas gostam? O quanto as crianças de hoje se sentem pertencentes à rua? “Nós éramos os donos da rua”, Bia Goulart lembrou de sua infância, e hoje, a insegurança e a violência, sem falar na pandemia, afastam as nossas crianças da rua e oprimem-nas entre paredes.

Voltar o olhar de dentro para fora, olhar para as crianças e “escutá-las com consequência”, como mencionou Mônica Samia, e a consequência é agir alinhado à sustentabilidade, e às preocupações internacionais com o meio ambiente, o que já é um movimento mundial. “As crianças que não têm essa conexão com a natureza, como esperamos que elas cuidem do planeta?”, indagou o pediatra Dr. Daniel Becker, no trecho do documentário O começo da vida 2- Lá fora, disponível em várias plataformas digitais. A importância da criança experienciar a natureza e a cultura foi trazida em todos os momentos do seminário, como força motriz da ampliação de repertórios e consciência de pertencimento, tanto por parte da criança como por parte do educador, que também aprende com o território e com as crianças, entrando no jogo da imaginação e do resgate cultural e natural. 

Lugares brincantes

Brincar é um direito de todas as crianças, garantido tanto na Constituição Federal (1988), artigo 227, quanto no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90), artigos 4º e 16º. As profissionais trouxeram para este encontro visões de desconstrução social consumista, como mencionou Mônica, costuradas e potencializadas por muitos educadores e famílias. Para brincar de casinha não é preciso comprar a cozinha de plástico cor de rosa na loja. É preciso pensar nos espaços do brincar sem brinquedo, do brincar com os elementos da natureza e da cultura que estão disponíveis para as crianças. Elas dependem dos adultos para terem voz e são as grandes vítimas das escolhas que fazemos.

“A escola muitas vezes colocou isso na nossa cabeça, que folha é verde e tronco é marrom. Olha quanta experiência foi retirada de nós, experiências lúdicas, brincantes, exploratórias e de experimentação pra gente chegar numa visão tão estreita de uma possibilidade tão ampla”, questionou Mônica, perto de sua finalização, e colocou-nos a pensar. A reconexão com a natureza por meio dos materiais, das formas, texturas, espaços, sensações e nas histórias dos lugares, nas raízes da cultura brasileira, nos cantos, nas vestimentas, tecidos, e brincadeiras regionais é o que vai “repertoriar” a todos para realmente conseguirmos escutar as crianças e agir.

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