Avante

Diversidade indígena, para além do fenótipo e dos estereótipos

Reduzir o indígena ao fenótipo pré-colonial, subrepresentado nos livros de História e veículos midiáticos, é apagar a ancestralidade indígena que resiste apesar das confluências étnicas que marcam a miscigenação do país.

Habitar cidades, consumir e produzir culturas para além das comunidades tradicionais, afirmar diferentes características fenotípicas e ocupar espaços sociais diversos é o que se espera de populações usurpadas de suas formas originárias de vida.

Reconhecer a existência e resistência dessa diversidade, no entanto, é fundamental para combater os estigmas enraizados no imaginário social. Enfrentamento que implica a desconstrução dos estereótipos e a visibilização das múltiplas identidades indígenas, que desafiam a educação do olhar e ampliam as possibilidades de reconhecimento.

Alinhada a esse propósito, a Avante – Educação e Mobilização Social conversou com Edivan Fulni-ô. Multiartista, filho de uma indígena Fulni-ô e de pai afrodiaspórico, ele rompe com o fenótipo do indígena de cabelos lisos, olhos puxados e pele avermelhada, com vivências que conectam a aldeia e a cidade. 

De pele preta e cabelos crespos, Edivan é um indígena Fulni-ô (Pernambuco), criado e crescido com os Pataxó Hã-Hã-Hãe (sul da Bahia). Saiu da comunidade para cursar Ciências Agronômicas na Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), mas escolheu fincar sua bandeira de demarcação no território das Artes.

Enquanto o seu corpo-território reverbera a confluência negra e indígena, sua arte denuncia os padrões que invisibilizam a diversidade da cultura indígena e apresenta outras construções narrativas sobre ela.

Nestas linhas e entrelinhas, Edivan Fulni-ô desafia a nossa perspectiva sobre diversidade indígena e nos coloca frente a frente com o racismo estrutural. 

Avante: Racismos, estereótipos, perspectivas reducionistas sobre os povos indígenas. Como tudo isso te atravessa?

Edvan Fulni-ô: Quando me apresento como um indígena negro, sou abraçado por debates afrodiaspóricos. Mas quando é sobre outras narrativas indígenas, sempre entra a questão do estereótipo, não só físico, mas o ideológico, do que é ser um indígena. A imagem esperada é sempre do indígena que está na mata, inocente e incapaz de se defender das maldades do sistema. Então, eu fico um pouco perdido quando me sinto cobrado por esse sistema padronizado.

Os filmes sempre abordam o sofrimento indígena com os enfrentamentos com fazendeiros e o agronegócio. Então, parece que isso acabou construindo uma identidade de ser indígena que é desse lugar de luta e sofrimento, não abrindo portas para novas ideias e formas de luta, como o próprio imaginário indígena, as próprias histórias e criações, cosmologias.

Acho que podemos e devemos ampliar a presença dos povos indígenas na criação de arte e, inclusive, adaptar a parte burocrática à realidade do artista indígena. Caso contrário, estaremos sempre restritos a trabalhos pequenos. O sistema colonialista tende a nos colocar sempre nesse lugar de iniciante, com recurso reduzido. 

Avante: Você tem vivência em duas comunidades indígenas e também em contextos urbanos. Há conflitos nesse trânsito? Como eles te afetam?

Eu cresci na aldeia Pataxó Hã-Hã-Hãe, mas minha mãe me trazia, anualmente, para participar do ritual Fulni-ô. Por isso, o aprendizado da cultura Fulni-ô vem de maneira fragmentada para mim. Conhecer, gostar, entender a história do povo Fulni-ô foi um aprendizado, a ponto de hoje eu estar morando aqui, como um chamado ancestral mesmo.

O fato de ser indígena, afrodiaspórico, de ter crescido em outro lugar, de sempre viajar por conta do trabalho, me traz cobranças dos meus parentes. “Você tem que começar a cantar na língua, levar o toré para o palco”. Mas, minha vivência mais permanente na aldeia Fulni-ô é recente. Eu ainda estou entendendo meu corpo nesse território, porque corpo é território, é vivência. Eu não quero aprender uma música na língua só para dizer que sei. Quero senti-la, vivenciá-la. 

Eu não quero ser o índio pra gringo ver. Aquele que fala na língua, que se veste de penas a todo instante. Eu quero falar também sobre outras coisas, e trazer os meus parentes para que eles apresentem a cultura Fulni-ô no palco, porque ser Fulni-ô é bem plural. Eu gosto de estar nesse lugar de comunicador, de levar a minha história de confluência indígena e negra, de fazer essa ponte entre aldeia e quilombo.

Avante: Quais os desafios de ser um artista indígena, preto, nordestino? 

Edvan Fulni-ô: Eu venho de muitas dores, desde a infância, para lidar com o racismo, para me entender e me afirmar indígena, para aceitar a minha ancestralidade indígena e negra, porque também se ver e se aceitar negro é um processo. E a arte tem segurado minha mão e me encorajado a trilhar esse caminho e não aceitar a invisibilidade e o apagamento, resultado de processos sociais violentos.

Dificilmente eu vou estar naquele flyer, naquela capa ou chamada, porque se prioriza o estereótipo do cabelo liso, do olho puxado. O sistema cobra um padrão, uma “legitimidade indígena”. Além disso, sinto que não tenho uma escuta ativa em todos os espaços indígenas. “Como assim esse índio preto está aqui? Vamos priorizar alguém que seja índio mais puro”. É um desafio ocupar esses lugares e, quando consigo ocupar, vou com esse corpo tenso, com medo do julgamento.

Esse é um desafio que percebo aqui dentro mesmo, dentro do sistema indígena. Na minha aldeia, na cidade, dentro da minha casa, com a minha família. A questão do estereótipo, do fenótipo, é muito cobrada em diversos espaços. E fora do sistema indígena não é diferente.

Com certeza, a Sonia Guajajara e o Krenak nunca tiveram suas identidades questionadas. Quando o Krenak leva as ideias para adiar o fim do mundo, o mundo inteiro ouve, porque ele se encaixa nas simbologias do que é ser indígena. 

Avante: Como você avalia o cenário das políticas culturais para os povos indígenas no Brasil? 

Edvan Fulni-ô: Eu tenho observado que de 2019 para cá tem tido bastante editais para povos indígenas. Mas, ao mesmo tempo, os povos indígenas têm uma singularidade, um tempo, uma espiritualidade ligada às suas criações que não se encaixa dentro do tempo e dos processos dos editais. Então, nossa inserção nesses processos é sempre mediada por pessoas brancas, das grandes metrópoles, que vivenciam o mercado.

Eu sinto que a presença indígena deve, real, estar em todos os lugares. Ela não é só sobre demarcação de terras, que é o ponto-chave, mas também tem entrelinhas dentro dessas demarcações que são, justamente, narrativas serem ouvidas e incluídas dentro de processos de novas construções de país.

Avante: Qual a sua opinião sobre o engajamento midiático de artistas não indígenas em prol da luta dos povos originários?

Edvan Fulni-ô: Existem muitos apoiadores da causa indígena, mas eu me pergunto: até que ponto esse apoio é benéfico? Quando grandes artistas, inclusive internacionais, trazem artistas indígenas para ocuparem seus palcos, eles constroem uma cena bonita, mas, depois, o indígena volta para as condições de sempre, de luta diária. Então, acho que deveríamos trazer o real protagonismo dos indígenas para o palco e esses artistas não indígenas é que deveriam fazer participações no show dos indígenas. Aí, sim, traria visibilidade, mais consciência. Muitos parecem utilizar o indígena como chaveirinho para mostrar que está engajado na causa ambiental, na luta indígena.

Avante: Você acredita que a sua arte auxilia a desconstruir estigmas? 

Edvan Fulni-ô: Com certeza. A ocupação de palcos e a visibilidade traz a quebra do estereótipo e a oportunidade de trazer nossas histórias e realidade. Mas, ao mesmo tempo, muitos palcos cobram e selecionam justamente artistas indígenas que se enquadram dentro desse perfil estereotipado. O indígena vai sempre ocupar um espaço onde está falando de demarcação. Por que a gente não toca em outros festivais simplesmente por sermos artistas? Parte disso tem relação com o mercado artístico, que tem forte financiamento de empresas ligadas ao agronegócio, descomprometidas com a consciência ecológica, onde o artista indígena não é bem-vindo.

Precisamos pensar em novas construções de festivais, novas ideias, novos debates, em que as pessoas possam curtir e também adquirir alguma consciência planetária, de vida e melhoria da sociedade.

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