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A potência do feminino no movimento comunitário do Calabar

As desigualdades sociais e urbanas vulnerabilizam populações em todo o país. Para as comunidades periféricas, marginalizadas pelo poder público, principalmente, em função do racismo estrutural, o direito à cidade é uma problemática já não mais restrita aos grandes centros urbanos, embora estes sejam os mais afetados.

Em Salvador, o bairro do Calabar, situado entre áreas turísticas e de classe média alta, protagonizou disputas acirradas pelo espaço social em 1970, originando movimentos e associações locais relevantes. Entretanto, essa resistência vem de mais longe. 

De acordo com especialistas, dentre eles, o historiador Cid Teixeira, o território onde hoje está localizado o Calabar, abrigou o Quilombo dos Kalabaris, fundado por ex-escravizados provenientes de uma região de mesmo nome na Nigéria.

O Calabar não somente guarda uma história importante de enfrentamento, como inspira e alimenta os moradores ainda hoje, sobretudo, as mulheres, que sempre integraram o movimento emancipatório do bairro.

Para contar e registrar a história de mais uma mulher que resiste na cidade de Salvador, a Avante – Educação e Mobilização Social conversou com Tereza Cristina Soares, cofundadora da Associação de Mulheres do Calabar.

Filha de Aladir Soares, a menina que nasceu na região de metro quadrado mais caro de Salvador, cresceu num convento mantido por uma das patroas da sua mãe, que trabalhava como empregada doméstica. 

Tereza Soares chegou ao Calabar em 2007, quando teve a sorte de passar no vestibular e acessar a universidade pública. Graduada em Secretariado Executivo, pela UFBA, Tereza só conseguiu realizar o curso por causa do trabalho, à época, na Biblioteca Comunitária do Calabar, que lhe permitia flexibilidade de tempo e recurso mínimo para se deslocar pelo campi universitário.

Após idas e vindas, Tereza retoma o trabalho na comunidade em 2014, engajando-se na arregimentação da Associação de Mulheres e na Biblioteca Comunitária. Desde então, Tereza tem sido um importante nome do movimento no Calabar. 

Entrevista

Avante: Você pode compartilhar um pouco da sua infância conosco?

Tereza: Quando eu nasci, era muito comum as empregadas domésticas dormirem no trabalho. Minha mãe passou muito tempo assim, e a gente não tinha uma casa. Eu morei com minha tia até uns 7 anos e em algumas casas que minha mãe trabalhou, até ser recebida pelo convento. Lá, eu fui educada, estudei, aprendi a bordar… Eu cheguei com 7 anos e saí com 17, e só consegui morar nesse lugar, porque uma das patroas da minha mãe era quem bancava a sua estrutura. 

O convento foi minha casa durante 10 anos, um lugar que eu agradeço bastante por ter estado. Eu chorava muito quando era criança, não queria estar lá, mas para onde eu iria se eu não tinha uma casa? Nesse convento, fiz todas as séries, até ser selecionada como bolsista para estudar em um colégio particular – Coração de Jesus – onde fiz todo o ginásio. Minha infância foi nesse contexto, entre a casa de minha tia e o convento. 

No convento, tudo era dividido, inclusive as responsabilidades. Acho que o fato de gostar e me integrar bem com o trabalho em equipe vem também dessa experiência, talvez ela tenha criado um pouco meu perfil ou ampliou o que já havia em mim. 

Avante: Você enfrentou algum desafio quando estudou como bolsista num colégio privado?

Tereza: Eu não lembro de ter tido nenhuma dificuldade ou questões que me trouxessem incômodo. Foi um processo muito tranquilo, até porque, naquela época, eu não tinha nenhuma consciência política, de nada, nem de racismo. Eu vim aprender sobre racismo no Calabar, sobre a situação que eu vivia ter a ver com questão social, com a minha cor. 

Avante: Você menciona o fato de sua mãe ter te criado sozinha. Como isso interferiu na sua infância?

Tereza: Eu lembro de ter sentido falta de pai. Eu tive um pai que teve uma “participação especial”, só a de me gerar. Lembro que eu sentia muito essa falta por causa de minha mãe – uma tristeza pelo abandono, não por minha causa, mas por causa dela. Eu pensava “poxa, como que uma pessoa grávida fica assim sozinha, sem apoio?”, então eu sentia muito essa tristeza. Eu sempre quis procurá-lo, por curiosidade, para, pelo menos, conhecer a cara. Talvez houvesse alguma expectativa, não sei. Eu o conheci, mas nunca mais a gente se falou. Eu não sei da história dele, nada. Eu lembro que eu chorava muito na infância, qualquer voz um pouco mais alta comigo, eu chorava. 

Avante: Quando é você chega ao Calabar? 

Tereza: Eu vim para o Calabar através da minha madrinha de crisma. Ela morava na casa onde eu nasci, era uma das pessoas que ajudava na arrumação da casa, já conhecia a luta do Calabar há muito tempo e me trouxe para cá. Eu vim, fiz estágio aqui, trabalhei e conheci a biblioteca.

Aqui eu soube que passei no vestibular. Eu tomei um susto quando vi meu nome na lista, porque não estava nos meus planos. Foi nesse contexto que eu cheguei e fui ficando. Participei da Associação de Moradores. Eu não lembro em que ano eu participei da diretoria, mas eu comecei meu engajamento de trabalho comunitário nesse tempo. Eu tinha 17 anos quando passei no vestibular, então eu linko mais ou menos essa idade quando eu vim pro Calabar.

Avante: Conte-nos um pouco da história do Grupo de Mulheres do Calabar.

Tereza: Desde 1982, por aí, que existe um Grupo de Mulheres no Calabar. As Mulheres sempre foram protagonistas aqui. E aí, a Associação, por meio de Justina, veio resgatando esse trabalho desde 2007, arregimentando e reativando o grupo para tocar a Associação de Mulheres.

De lá para cá, a gente criou o estatuto da Associação de Mulheres que deve estar indo para o seu terceiro ano. Hoje, somos 8 pessoas na associação, entre diretoria e conselho. A gente trabalha no sentido de criar uma agenda de várias ações – bazar, café das mães, artesanato… 

O artesanato começou a ser aquecido em 2017. De lá para cá, a gente faz direto, e é uma das coisas que a gente acredita que pode trazer autonomia para as meninas – trabalho, renda – a partir do desenvolvimento das habilidades manuais. 

Avante: Como você acredita que colabora com o trabalho comunitário?

Tereza: Eu sou uma pessoa bastante presente, engajada e sonhadora. Toda hora tem uma coisa nova na minha cabeça, mas temos limitações, porque a maioria das pessoas têm um trabalho. Então, não há um suporte para manter as pessoas na luta comunitária. Eu sou uma mulher mais presente, porque estou no trabalho e aqui no Projeto, isso me permite uma flexibilidade de tempo.

A questão financeira pesa  e as pessoas não vão, e não podem sair dos seus trabalhos para fazer a luta. As pessoas se envolvem quando têm disponibilidade. Isso é uma realidade que está cada vez mais difícil: engajar e mobilizar. Como a gente continua a fazer um trabalho, que é necessário, com essa realidade? Então, é um desafio, porque o Calabar é conhecido como um lugar de luta e de muitas conquistas, mas hoje, os tempos mudaram. A gente ainda tem muitas coisas não muito visíveis para conquistar, como: qualidade de vida, direitos, garantias. Além disso, a gente precisa inspirar novas pessoas também para isso. 

Eu me vejo engajada. Estou sempre procurando uma maneira da gente estar vivo, atuando. Eu gosto muito da parte de articulação, de juntar pessoas, saberes e grupos. 

Avante: Quais são as principais pautas que movem as mulheres para estar no grupo? 

Tereza: Acho que todas que estão aqui acreditam que elas podem contribuir para mudança social, qualidade de vida das pessoas da comunidade e que podem fazer isso no seu pouco tempo disponível, eu acho que isso faz com que a gente exista. 

Avante: Você comentou que quer ver coisas acontecerem. Qual é o teu maior sonho? 

Tereza: Meu sonho é ver a gente fazendo o que gosta. Eu sonho ver a biblioteca lotada, com público. Que todas as pessoas da comunidade – velhos, crianças, homens e mulheres, – tivessem esse lugar como um ambiente de acolhimento. Aqui é um ponto de cultura, então que houvesse muitas possibilidades, para que cada pessoa encontrasse algo que gostasse e pudesse se envolver – leitura, capoeira, dança, oficinas… De maneira geral, meu sonho é ver a comunidade acessando espaços onde possa desenvolver os seus talentos. 

Outro sonho é que a gente tenha pessoas engajadas para que se desenvolvam na sua potência – que o jovem possa fazer a sua música, a sua dança. Que possa ser aqui o lugar que projeta, que acolhe todas as pessoas. Que possa ser esse lugar onde a criança, desde pequena, vai dar os seus primeiros passos. Então, esse é um sonho – ter um centro grande, tipo um ginásio, onde acontecem várias coisas. Um lugar para a Associação de Mulheres ter o seu artesanato, seu bazar permanente, uma loja de artesanato. Eu tenho vontade de ter essas coisas concretizadas, porque assim a gente pode criar uma vida aqui dentro – escola, creche, quadra, onde a gente tem trabalho e cultura… Não é que a gente vai viver aqui e não vai sair, mas aqui também é o lugar que tem que dar conta dessas coisas e tem capacidade para isso, porque tem equipamentos e pessoas pensantes; meu sonho é que a gente possa existir de verdade, na nossa potência.

Avante: Eu queria que você falasse sobre a articulação entre comunidades e a sua importância.

Tereza: A gente acha importantíssimo, porque é algo do DNA do Calabar – a articulação entre as comunidades. O Calabar sempre foi muito engajado no passado, com uma participação muito ativa nas comunidades, na vida dos movimentos sociais – de organizar caminhadas, passeatas… Então, quando a gente sai daqui para uma reunião na Baixa do Tubo e as mulheres da Baixa do Tubo vêm para uma reunião aqui, conhecer a luta, dentro da biblioteca, um espaço que é um ponto de cultura, é como se eu tivesse vendo esse movimento novamente.

Os intercâmbios são importantes para renovar a luta, atraindo pessoas que têm interesse em conhecê-la. Os encontros e articulações alimentam os dois lados, as duas comunidades envolvidas, no sentido de manter a esperança ativa, de ver o que a gente quer e tem condição de fazer e trocar essas experiências, ter conexões para poder fazer o que cada lugar quer fazer. O que acontece nas comunidades é muito parecido, as pessoas têm uma trajetória de faltas, poucas conquistas, mas tem Conquista também! Então, essa troca de experiência e criação de vínculos fortalece a luta das comunidades, de uma maneira pontual, para cada um e, de uma maneira geral, para as mulheres negras.

Avante: Como você avalia o acesso das pessoas à Biblioteca Comunitária? 

Tereza: Antes da pandemia, ela estava em seu auge, com muitas crianças e adolescentes. A pandemia veio e dispersou o público. Quando a gente percebeu, as crianças tinham dado um salto de tamanho, e a gente entendeu que precisava criar iniciativas. Nós temos algumas atividades em funcionamento, mas estamos num momento de pesquisa de público, entendendo qual é esse novo público. 

Avante: Você quer pontuar mais alguma questão sobre o trabalho comunitário?

Eu acredito no trabalho de união das pessoas, que o trabalho comunitário precisa de pessoas. Ele é necessário e não pode ser feito com pessoas isoladamente. A conexão, a união, a cooperação entre as pessoas é o que vai realmente impulsionar o trabalho. A articulação que a gente faz com instituições como a Avante, a Casa de Apipema, pode nos engajar para aprender, estudar e acessar os recursos públicos. Eu falo da cooperação, da união entre as pessoas, para que a vida seja uma vida digna, uma vida feliz. 

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