Interromper a violência doméstica quando ela estiver acontecendo; esta é finalidade da campanha iniciada em 2008, na Índia. Impactante e pioneira, ela tem como carro chefe vídeos propondo a interrupção da violência a partir de uma simples ação: bater na porta da residência onde estão acontecendo as agressões. Recém lançado, o vídeo brasileiro, direcionado à violência contra as crianças, foi filmado na comunidade do Calabar, em Salvador, numa parceria entre a ONG Avante-Educação e Mobilização Social e a produtora Comova. Veja a matéria feita pelo programa Estúdio i, da Rede Globo.
No caso da índia, onde a campanha foi iniciada, o foco é a violência contra as mulheres e o nome é Ring the Bell. Com grande repercussão e angariando cada dia mais apoiadores de peso, como o secretário geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, a campanha começa a ser replicada em outros países. Na América Latina, o primeiro foi o Peru, onde a campanha busca defender as crianças e ganha o nome de Toca la Puerta. O segundo, também focado nas crianças, foi o Brasil. O vídeo gravado em Salvador contou com um elenco formado por meninos e meninas da comunidade do Calabar. Com o nome de Bata na Porta, foi lançado em 2 de dezembro, e com duas semanas no YouTube, alcançou a marca de 10 mil visualizações.
Bata na Porta
“Vou tocar o berimbau enquanto brincamos de capoeira. Samara vai tomar uma rasteira de Patrick e nessa hora ela vai ouvir alguém batendo em uma criança. Então ela levanta e sai correndo, procurando de onde vem o barulho da violência e a gente vai atrás dela até que encontramos a casa onde o pai está batendo na criança. Ela bate na porta da casa. O pai vai abrir e acaba com a confusão, porque ele vai ter que nos atender e com isso dá um tempo e se acalma.” Assim Leo Magalhães de oliveira, 8 anos, resume o roteiro do vídeo durante a filmagem, no dia 7 de novembro, na comunidade do Calabar.
Leo Magalhães é um dos garotos que fazem parte do Grupo de Crianças do projeto Infâncias em Rede, realizado pela Avante-Educação e Mobilização Social, que desenvolve e articula estratégias de participação infantil no Calabar em parceria com a Fundação Holandesa Bernard van Leer. A organização é a realizadora do vídeo Bata a Porta, em parceria com a produtora COMOVA.
A coordenadora do projeto, Ana Oliva, conta que foi apresentada à ideia da campanha quando esteve no Peru, em 2012, para a Consulta Internacional de Expertos em Prevenção e Resposta à Violência contra a Criança na Primeira Infância. “Assisti ao Ring The Bell, realizado pelos indianos. Os peruanos compraram a ideia e focaram na violência doméstica contra a criança, tema que estamos trabalhando com os meninas e meninas do projeto no Calabar há algum tempo, por demanda deles mesmos. O vídeo é um dos resultado dessa ação”. O Calabar é um bairro de maioria negra, que já foi favela e está fincado entre áreas tradicionalmente habitadas por famílias de alto poder aquisitivo.
Ela explica ainda que, como parte da estratégia de disseminação da campanha, uma das ideias é inspirar outras organizações a produzirem novos vídeos do Bata na Porta. “O roteiro tem um eixo central que pode ser adaptado facilmente para outras realidades culturais, assim como fizemos em Salvador com a capoeira”. Ana Oliva ressalta, no entanto, a importância de manter esse eixo central. OU seja, a importância de conservar a ideia de interromper, em grupo, a violência, principalmente quando incentivar crianças e adolescentes a bater na porta, no intuito de garantir a eficácia e segurança de quem for colocá-la em prática. Assim como ter um motivo/desculpa para fazê-lo, como pedir água, ou outra coisa que o valha (na Índia há vídeos em que é pedido chá, leite e até o uso do telefone). “Isso diminui o risco de a violência se voltar contra quem a interrompe e também contra quem já estava sofrendo com ela”.
Dados
A campanha Bata na Porta surge num momento do país em que o tema dos direitos da criança e adolescente tem estado na pauta de discussão. Apesar disso, de acordo com a ONG Childhood Brasil, o país apresenta uma forte carência de dados sobre a violência contra esse público. Uma das poucas fontes de informações é o Disque-Denúncia Nacional, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR). O serviço registrou, em 2014, mais de 91 mil denúncias de violações de direitos de crianças e adolescentes. Para a Childhood Brasil, “esse número não representa, necessariamente, o tamanho do problema, mas traz uma dimensão de como está fortemente inserido na sociedade. São muitas as variáveis a serem consideradas, e os números disponíveis dão apenas um perfil geral do problema”.
O aumento do número de denúncia, no entanto, pode demostrar que a sociedade vem sendo, pouco a pouco, conscientizada. Em 2014, foram registradas pelo Disque Denúncia do dobro das denúncias de 2006 (41.050 ligações). Além disso, o tema tem sido trabalhado por inúmeras organizações não-governamentais. A militância e ações da sociedade civil, juntamente com a repercussão nacional dos assassinatos do menino Alex (morto pelo pai depois de seguidas sessões de espancamento, no Rio de Janeiro) e do menino Bernardo Boldrini (em abril de 2014, no Rio Grande do Sul) tornou o tema prioridade para o Poder Legislativo, que transformou em lei o projeto 7672/2010 proibindo o uso de castigos físicos ou tratamentos cruéis ou degradantes na educação de crianças e adolescentes. A Lei ficou conhecida como Menino Bernardo.
Comova
A campanha Bata na porta, além de ser uma ação importante, que traz uma abordagem prática para o enfrentamento da violência doméstica que atinge milhares de crianças e adolescentes no país, é também consequência natural do trabalho de seus realizadores. De um lado, a Avante-Educação e Mobilização Social, uma ONG sediada em Salvador e que ao longo de 20 anos de história, tem se tornado uma referência nacional, principalmente na luta pelos direitos das crianças e adolescentes. O projeto Infância em Rede, realizado no Calabar, onde nasce a ideia do vídeo, é um exemplo de ação da Avante, que além de inúmeros outros projetos e da militância, é hoje, a parceira da Prefeitura de Salvador na construção de um sistema pedagógico, inédito no país, de Educação Infantil, que será implementado a partir de 2016.
Por outro lado, a campanha tem como realizador um grupo de profissionais do audiovisual que formam um coletivo cujas ações vão além das de uma produtora de vídeo. “Eles são uma agência de advocacy”, resumiu a coordenadora do projeto Infâncias em Rede, Ana Oliva. Um dos seus associados, Gustavo Amora, por exemplo, já foi um Global Leader (2009), ou seja, um líder brasileiro no Fórum Mundial sobre Cuidados e Educação na Primeira Infância, pela causa da defesa de direitos das crianças. A militância nessa área norteia muitos dos trabalhos da produtora. Um dos mais recentes documentários, Ninguém Nasce no Paraíso, que fala da proibição de ter filhos na Ilha de Fernando de Noronha e sua consequência para as mães e crianças, foi eleito Melhor Curta pelo Juri Popular na Mostra de Brasília, do 48º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.