
A cinco meses da 30ª Conferência Mundial sobre Mudanças Climáticas (COP30), que acontecerá em Belém, região amazônica do país, o Senado aprovou um projeto de lei que abre precedentes para a devastação; e os povos indígenas, maiores responsáveis pela preservação de áreas florestais, seguem lutando pelo mínimo: reconhecimento étnico.
Guardiões das florestas e também partícipes do contexto urbano, os povos indígenas continuam interpelados por inúmeras problemáticas, como: a necessidade de ampliação de políticas públicas diferenciadas e de representação política; discriminação étnica, sobretudo, para os que vivem em contexto urbano; assassinatos de lideranças indígenas, além da famigerada disputa pela demarcação de terras.
Esse cenário, no entanto, nos coloca diante de algumas interrogações: por que essas pautas não mobilizam amplamente a sociedade brasileira? Por que a demarcação de terras originárias é importante para todo o país e não apenas para os indígenas? O que os povos indígenas têm a nos ensinar com os seus modos de viver?
Nossa débil formação educacional, estruturada sobre as bases do pensamento europeu, nos desconectou da nossa própria história, ancestralidade e território, nos alienando de discussões políticas relevantes; daí a importância da Lei n. 11.645/2008.
Ao determinar a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura dos povos indígenas no currículo nacional, a Lei 11.645 abriu possibilidade para que as nossas crianças sejam formadas para reconhecer as suas origens, territórios, diversidades culturais, e, por consequência, valorizá-las e defendê-las.
Para nos auxiliar a responder tantas interrogações e a vislumbrar um futuro diferente, a Avante – Educação e Mobilização Social ouviu Maynamy Santana, advogado e ativista indígena.
Namy Xucuru-Kariri vem de uma trajetória relevante com a academia e de um ativismo de 42 anos, o que lhe confere trânsito livre entre a ciência, a experiência e o conhecimento ancestral, permitindo-lhe elaborar análises confluentes e profundas sobre a questão indígena no Brasil.
Avante: Qual a importância da terra para os povos indígenas?
Para os povos indígenas a terra tem uma conotação diferente. Enquanto no contexto capitalista democrático brasileiro a terra é um símbolo de poder econômico assistido, para o indígena, não. É o seu meio de sobrevivência, a sua mãe. É quem lhe dá a água, a fruta, o peixe, a caça, é quem lhe dá as condições basilares da sua vida biológica.
Então, esse contato com a natureza nos permite a capacidade do reconhecimento étnico, porque nós somos reconhecidos pela natureza e pelas habilidades ali demonstradas. A capacidade de trocar a informação e de compreender a linguagem da Mãe Terra, a linguagem desses biomas, a linguagem do tempo, das aves, dos animais terrestres, aquáticos, para fazer uma troca de informação que ainda não tem catalogação linguística. Esse nível de conhecimento, de troca de informação, a nível molecular, posso dizer assim, é o que nos tem permitido sobreviver.
Avante: Demarcação territorial e integração dos povos indígenas. Pode nos explicar esses contrapontos e como eles afetam a garantia dos direitos indígenas?
A principal bandeira dos povos indígenas é a demarcação territorial. Por quê? Pertencimento étnico. É preciso territorialidade para haver pertencimento. Sem território, há a autodeclaração, mas não há pertencimento, porque, sem a terra, o indígena não tem como exercer as suas atividades espirituais, culturais, seu modo de viver, de existir e de se relacionar. Sem o território, os povos indígenas passam a ser oficialmente reconhecidos como povos integrados.
E o que é esse povo integrado? A negativa da demarcação territorial retira o pertencimento, a identidade, mata o conhecimento ancestral e avança para a ausência de política pública diferenciada. Por isso que a demarcação territorial é a maior luta, porque é através do território que você garante a especificidade desses povos.
Avante: Em março deste ano, um líder pataxó da comunidade da Barra Velha do Monte Pascoal foi assassinado, mas esse não é um caso isolado. O que você tem a dizer sobre esse projeto de dizimação persistente dos povos indígenas, de norte a sul do país?
Primeiro, há um elemento estrutural do Estado e das forças de segurança pública. Quando uma violência é cometida, nos registros policiais ela não é reportada a partir de sua causa – violência de gênero ou étnica, por exemplo, mas como homicídio. Se eu não consigo encontrar a causa, então eu lido apenas com a consequência.
A outra questão é o empenho da força da lei. Na narrativa democratizante que estrutura o nosso país, o uso da força pelo Estado é legítimo para a garantia da paz social. E o que fazer quando o maior violador é a força de segurança pública? Quais são as condições paritárias que eu tenho para provar o ato de violência cometido por um policial, se eles detêm o poder do registro, da prova, a estrutura econômica do Estado para busca e fomento dessas provas que corroboram todo o processo? Então, esses homicídios contra os povos indígenas no extremo sul da Bahia só refletem um processo coronelista, fomentado pelo poder público e que ainda continua latente e vigente.
O primeiro homicídio cometido foi pelo Estado brasileiro, ao retirar dos indígenas os seus territórios, com a extinção dos aldeamentos por meio do Decreto Imperial de 1872. A questão dos registros é só um braço dessa violência.
Avante: Quando algo acontece com os povos Yanomami a informação chega para todo o país, mas o mesmo não acontece com os indígenas do Nordeste. De onde vem essa invisibilização?
Recentemente, uma pesquisa publicada pela Universidade de Cambridge afirmou que os povos indígenas chegaram ao Brasil por meio do Norte, e foram se instalando.
Enquanto na região Norte, os povos se concentraram e se consideraram parte do bioma Amazônia, os povos indígenas do Nordeste, em um grau diferente de evolução, passaram a se adaptar a biomas com escassez de água e dificuldades de plantio, como a caatinga, tendo que encontrar outras formas de sobrevivência.
Então, nossos parentes indígenas do Norte ainda conseguem manter esse estereótipo, por conta desse processo de aldeamento e isolamento. No Nordeste, não. O Nordeste é a área geográfica do Brasil com a maior densidade de indígenas. O Norte é maior em quantidade e em dispersão geográfica. Mas, nós somos a segunda maior região do Brasil em número de indígenas. Salvador é a segunda capital do Brasil com maior população indígena urbana do país, por exemplo.
[A densidade populacional indígena é a relação entre o número de indígenas e a área onde eles vivem. Isso ajuda a entender se a população indígena está mais concentrada ou dispersa.]
Por isso, entendemos que os povos do Norte têm mais visibilidade, mas menos força política para lutar pela garantia dos direitos. Em contrapartida, os povos do Nordeste são mais invisibilizados, porque têm uma carga de preconceito muito grande. No entanto, essa força estatal para invisibilizá-lo deu a ele a revolta e a força necessária para lutar e defender os seus territórios e identidade. Então, esses povos indígenas do Norte ainda se encontram nesse minimalismo do Estado brasileiro em relação ao contexto social e a aplicação de políticas públicas efetivas.
Avante: Para fechar, qual a importância dos povos originários para o equilíbrio ambiental?
Em 2023, tivemos a COP no Egito, e o organizador compartilhou que já chegamos ao ponto de não retorno em diversos sistemas. Mas, é interessante que um outro estudo aponta que as áreas de mata atlântica e de biomas de concentração da fauna e flora brasileira, que estavam registradas nos cartórios de propriedades privadas, diminuíram 67% da sua área de preservação nos últimos 35 anos, enquanto que as que estavam sob a administração dos povos indígenas, diminuíram apenas 1%, e mediante muita violência, porque nós damos a vida para defender isso.
O antagonismo do discurso que existia lá atrás, que os povos indígenas eram involutivos e pré-históricos se esvai, porque é aquele modo pré-histórico de viver que está garantindo a minimização dos efeitos das mudanças climáticas.
Quando nós preservamos as nossas matas, nós garantimos oxigênio. E o oxigênio que produzimos dentro das nossas matas e aldeias é para a humanidade. Os rios que lutamos para manter vivos, porque para os povos indígenas os rios são seres vivos, eles morrem (olha o que fizeram com o São Francisco!). Então, é catastrófico o futuro, mas não desistimos.