Hoje em dia, com o acentuado uso das telas, a leitura tem perdido lugar em nosso cotidiano e, para muitos, os livros só têm espaço cativo nas prateleiras. Diante dessa triste realidade, será que podemos admitir que a leitura está ficando demodê? Não, em especial quando falamos de crianças e suas fantasias tão necessárias para um desenvolvimento saudável.
A experiência com a literatura liberta a criança dos limites impostos pela realidade imediata. Ajuda a lidar com seus sentimentos, dificuldades e frustrações. A literatura contribui para a criança atuar sobre a realidade de forma criativa, inventiva e emancipatória.
Por isso, no Dia Nacional do Livro Infantil, a Avante – Educação e Mobilização Social oferece uma pequena contribuição à sua criança. Indicamos a leitura de Kabá Darebu, de Daniel Munduruku. O livro traz a possibilidade de estimular na criança, de forma prazerosa, uma visão de mundo diversa da que nós, ocidentais e ocidentalizados estamos acostumados.
Segue a história
Imagine só conhecer a cultura de uma aldeia pelos olhos e narração de uma criança indígena? Kabá Darebu é um menino, de sete anos, apaixonado pelo lugar onde vive e orgulhoso da história de seu povo.
Pertencente ao povo Munduruku, povo habitante da floresta amazônica, cujo contato com os brancos se deu há cerca de 200 anos, Kabá Darebu recebeu esse nome do avô, em homenagem a um sábio ancestral contrário a toda e qualquer forma de violência. Um título que não somente anuncia o protagonismo do personagem da história, mas sublinha a resistência das comunidades indígenas frente à violência contra a natureza e seus povos.
Na narrativa, ora descritiva, ora poética, o autor nos convida a mergulhar num universo infantil de imagens acionadas pelo contar encantado de Kabá Darebu, combinadas às cenas ilustradas em aquarela, guache e colagens de pinturas em seda, produzidas pela francesa Marie Therese Kowalczyk, que, deslumbrada pelo Brasil, decidiu por aqui ficar, desde a primeira visita em 1979.
Protagonista da história, Darebu é quem apresenta, de criança para criança, em primeira pessoa, o seu lugar, sua família, suas tarefas cotidianas, e, sempre que pode, algumas palavras em sua língua. A presença do vocabulário em Munduruku desperta a curiosidade dos leitores e pode ser um excelente caminho para falar sobre a variedade linguística dos povos indígenas com as crianças.
O pequeno indígena, ao falar de sua UKA’A (casa), explica que os materiais utilizados para sua construção favorecem a ventilação durante todo o dia, e garante que “é gostoso morar nesta casa porque de dia fica bem ventilada e à noite ela é bem fresquinha”.
Para a maioria das crianças, que moram em casas ou apartamentos, o livro estabelece um contato com outras formas de morar. O que os pequenos urbanos achariam de uma casa de barro coberta com folhas de palmeira? Será que a imaginariam tão agradável como relata Kabá Darebu?
A obra infantil de Daniel Munduruku retrata, sob o olhar de Darebu, a importância das vivências em família, dos aprendizados com as referências da aldeia – geralmente pessoas mais velhas (avós e pajé) – das brincadeiras livres com outras crianças, do respeito à natureza. É debaixo da lua e das estrelas, ao redor da fogueira, que o pequeno indígena diz aprender a amar e cuidar da Mãe Terra.
Com Darebu é possível aprender e compreender que essa Mãe, a saber, a natureza e todos os seres que a compõem, compartilham de uma vida comum, que implica o equilíbrio de todas as partes. A obra traduz com ludicidade o conceito de ecossistema e facilita aos pequenos perceberem a responsabilidade humana sobre a preservação integral do meio ambiente. “A gente trata os animais como um parente nosso!”.
Darebu nos convida a acessar sua cultura sem esquecer nenhum elemento. Dos aspectos alimentares às questões de ordem espiritual, o nosso protagonista nos ensina que a natureza é provedora e regente das dinâmicas naturais, composta por espíritos que protegem e se comunicam com os homens, razão pela qual os pais “ensinam a fazer silêncio para ouvir os sons da natureza”. Segundo ele, os rios falam e os pássaros trazem as notícias do céu, “por isso temos de aprender a nos comunicar com os espíritos da floresta”.
As pinturas corporais servem a diversos propósitos, um deles é poder torná-los invisíveis diante de animais, e a música, ao espantar os espíritos ruins, traz cura. Qual criança não se encantaria com a cultura de Darebu?
Em sua aldeia, que ele faz questão de explicar – “um monte de casas juntas” – o médico é o pajé. É ele quem cuida dos doentes, e o faz com uma maracá nas mãos, acompanhada de chás, massagens e banhos.
Mas o tom da narrativa muda quando Kabá Darebu compartilha sobre a chegada dos Pariwat, os homens brancos. Foram eles que trouxeram as doenças que os pajés não podem curar e, depois deles, as festas de seu povo perderam a frequência, e tudo ficou diferente. “Nossos pais contam que antigamente havia mais músicas, mais danças, mais festas”.
Apesar da chegada e interferência dos brancos, Darebu confirma que ele e seus amigos são felizes, cuja atribuição está no reconhecimento da identidade e ancestralidade indígena. “Nós gostamos de ser o que somos porque somos parte de um povo”.
No desfecho da obra, Daniel Munduruku, indígena que aprendeu os segredos da floresta com seu avô, e que se confunde com o protagonista da narrativa, encerra a contação da história ressaltando a necessidade de, por meio da transmissão geracional, manter viva a história, uma vez que, segundo o autor e personagem, “só assim continuaremos vivos… e livres…”.
Ao final do livro, é possível conhecer mais profundamente a história do povo Munduruku, seus aspectos linguísticos, culturais e mesmo políticos. Além de informações sobre a diversidade indígena que habita o território brasileiro, suas singularidades e semelhanças.
Kabá Darebu é uma excelente dica para apresentar a cultura indígena para os pequenos. A construção narrativa em primeira pessoa, na voz de uma criança, possibilita ao pequeno leitor ou ouvinte acompanhar a história com o mesmo entusiasmo e brilho nos olhos do protagonista. É uma obra interessante para abordar temas que perpassam desde a diversidade sociocultural até a preservação da natureza.
E, de quebra, se potencializada como instrumento de reflexão com as crianças, a leitura colabora para fazer valer, no chão da escola, a Lei 11.645/08, que inclui a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígenas. Uma forma lúdica e bela de combater o racismo e ensinar às crianças e adolescentes a respeitar e conviver em diversidade e paz.