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O poder da observação na garantia do Direito ao Brincar

O que dizem as crianças com os seus corpos, movimentos, gestos, expressões, silêncios e brincadeiras? Como compreendê-las a partir do que não é dito com palavras? Para entender e atender as crianças é preciso escutá-las – essa tem sido a defesa e a tônica dos projetos desenvolvidos pela Avante – Educação e Mobilização Social, há quase três décadas.

Escutar, no entanto, “tem a ver com enxergar a criança, não é uma escuta de ouvido, é uma escuta de corpo inteiro”, alerta Ana Marcilio, consultora associada da Avante e especialista em participação infantil. A escuta prescinde e fundamenta a participação da criança na vida familiar, comunitária e social. Circunscrita como um dos aspectos do direito à liberdade, a participação está prevista no Artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Observar com intencionalidade e sensibilidade, portanto, foi a estratégia do projeto Foco nas Infâncias: defesa de direitos na Baixa do tubo do Coqueirinho, para observar o brincar das crianças nos espaços públicos da comunidade e, assim, encontrar pistas para coletar percepções sobre as relações entre as próprias crianças, e entre as crianças e os adultos que ali vivem.

Esse projeto está sendo desenvolvido para estimular a construção de repertórios relacionais promotores de igualdade racial e de gênero entre crianças e adolescentes e entre elas e seus cuidadores. “Acreditamos que podemos alcançar este objetivo a partir da organização de grupos de convívio. Por isso, desde o início desse trabalho com as crianças e os adolescentes, nossa intenção foi estabelecer laços de confiança e afeto. Construir entre as crianças que brincam conosco na praça uma percepção de grupo e estimular uma organização autônoma e coletiva da brincadeira no espaço público comunitário”, explica Christiane Sampaio, coordenadora do Projeto.

Igor Sant’Anna, mobilizador territorial brincante do Foco nas Infâncias, compartilhou os principais pontos que direcionaram o seu olhar por, pelo menos, dois meses de observação. Para ele, “era fundamental observá-las antes de propor uma brincadeira”. Em qualquer situação, “o educador que vai realizar uma intervenção, precisa fazê-la diante de alguma realidade. Intervir sem observar, reduz a nossa possibilidade e capacidade de ação como educador”, reforçou.

Para que o olhar atento de um desconhecido não ocasionasse estranhamento e, por consequência, alterasse a dinâmica das crianças, o mobilizador brincante estabeleceu uma inserção gradativa, sem se eximir de participar das brincadeiras. “Eu não ficava só observando como um estranho, eu tinha que criar alguma empatia com eles, ser um observador de dentro do processo”, explicou Igor. 

Conectar-se às crianças é uma importante estratégia para estabelecer com elas uma relação de escuta e diálogo. Maria Thereza Marcilio, presidente da Avante, lembra que a linguagem utilizada pelas crianças é diferente, por isso, “temos que prestar atenção na expressão corporal delas, no olhar e nas palavras que nem sempre são as mesmas que nós usamos”. 

Para se aproximar das crianças, Igor utilizou um elemento do seu universo como ponto de conexão. “Eu levei umas claves de malabares, pois tenho uma vivência com o circo. Elas não me conheciam, logo, eu precisava de um gancho. A partir dali, fomos criando uma relação de cumplicidade. Então, segui observando e brincando, mas sem fazer nenhuma proposição ou intervenção”. 

Percepções

O primeiro elemento identificado por Igor foi a disposição das crianças para o brincar e as relações que elas mantêm com o campo de futebol da comunidade, intensamente disputado com adolescentes e adultos. Dessa disputa, veio a segunda percepção: a preponderância do mundo adulto sobre as crianças. “Há uma hierarquia no uso desse campo e o que sobra para as crianças é um espaço precário ao lado”, destacou.

Com a prioridade do campo de futebol para os adultos, as crianças se divertem em uma espécie de pracinha, ocupada por aparelhos de uma academia de ginástica municipal. Na ausência de um parquinho adequado, os equipamentos se transformaram em brinquedos. “Apesar das limitações que este espaço apresenta, foi o local possível diante dos desafios encontrados pela equipe. Este é o espaço onde as crianças usualmente brincam no horário dos nossos encontros, apesar de imprensadas entre uma pista que passa carros, um pequeno pedaço de calçada e um chão de asfalto que dá acesso ao campo”, ressaltou Christiane Sampaio.

Os espaços públicos da comunidade da Baixa do Tubo são o retrato de uma cultura adultocêntrica, que não enxerga a criança como prioridade e segue construindo cidades apenas por e para os adultos. “Um jeito de mudar isso é lembrar que todo adulto tem uma menina ou um menino dentro dele. Assim, fica mais fácil escutar as crianças como pequenas cidadãs, que podem (e devem!) participar das cidades onde vivem, transformando esses lugares com mais brinquedos, livros, árvores, escolas, calçadas e menos carro, lixo e consumo”, explica Maria Thereza.

Os conflitos entre as crianças, a falta de vivência na cidade e a ausência de noções básicas de cuidado consigo mesmas e com o espaço público também chamaram a atenção do mobilizador.

Impactos

Do período de observação às intervenções brincantes, a equipe já consegue pontuar impactos significativos. A fila do lanche e do pula-corda, por exemplo, momentos sempre propícios aos conflitos, já têm apresentado mudanças, e os combinados para a manutenção do cuidado com o espaço público estão na pauta da participação das crianças.

“No processo de mediação de conflitos e ao longo das atividades, sempre conversamos e apresentamos princípios importantes para elas. A gente já consegue perceber o impacto no comportamento das crianças durante as brincadeiras, nas filas e após o lanche”, avalia Igor.

“Eu insisto que a grande questão é saber escutar, é saber se colocar no plano da criança, ficar na altura dela e saber o que ela tem para dizer e, com a sensibilidade e a atenção necessárias a essa escuta, você começar a elaborar o que está sendo dito”, conclui Maria Thereza. 

A participação das crianças é um passo importante para a garantia do direito ao brincar. É preciso escutá-las para mobilizarmos a construção de cidades brincantes, seguras e acessíveis para todos.

O Projeto, que começou atendendo um pequeno grupo que já brincava na praça, está chegando à marca de 40 crianças moradoras de diferentes pontos da comunidade da Baixa do Tubo/ Sucuiú. 

Foco nas infâncias: defesa de direitos na Baixa do Tubo do Coqueirinho é realizado pela Avante – Educação e Mobilização Social, com apoio da Kindernothilfe (KNH).

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