O quarto levantamento realizado pela Campanha Cadê Nossa Boneca? em 2023 trouxe novidades e algumas razões para celebrarmos. O trabalho revelou que do universo de 1.542 modelos de bonecas produzidas, 1.333 são brancas e 209 são pretas, o que corresponde a 13,6% dos modelos identificados.
Apesar do aumento de 6% (2016) para 13,6% na oferta, alavancado tanto por uma maior procura da população por bonecas pretas, como pelo próprio mercado, ao oferecer mais diversidade, o crescimento ainda deve ser considerado muito pequeno. Em especial se comparado à desproporção na oferta de modelos de bonecas brancas e de bonecas pretas pelo mercado em um país com cerca de 50% da população autodeclarada preta ou parda (IBGE 2022).
Os 86% dos modelos brancos não refletem a realidade e distorcem a construção de uma percepção de representatividade, algo que as mulheres pretas, invisibilizadas desde a infância, conhecem muito bem. O baixíssimo número de bonecas pretas disponíveis nas prateleiras denotam essa grande lacuna que se abre na infância no campo da representatividade, tão importante para a formação da subjetividade e da identidade de meninas pretas.
“Escolhemos produzir bonecas pretas por acreditar que as brincadeiras deveriam ser inclusivas, onde as crianças, em especial as pretas, pudessem ter possibilidade de se enxergar nos brinquedos”, conta Tatiana Rosa, criadora do Menina Arteira. Histórias semelhantes a dela inspiram o trabalho de outras artesãs, como Luane Rodrigues, que defende que a representatividade por meio das bonecas possibilita a elevação da autoestima e a construção da identidade. “Não existe nada melhor do que presentear uma criança preta com uma boneca em que ela possa projetar sua autoimagem”, afirma a fundadora da D’Lua – Bonecas de Pano.
As grandes empresas, aos poucos, também estão iniciando um processo de reconhecimento da importância desse mercado. Dos 68 integrantes da Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos – ABRINQ, em 2023, 26 têm bonecas em seus catálogos. Dentre estes, dezoito oferecem modelos de bonecas pretas, enquanto 08 possuem apenas modelos de bonecas brancas.
“O que é importante para nós é que a criança preta no Brasil, que quer brincar com brinquedo preto, tenha essa opção”, afirma o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Costa. Em entrevista concedida à Avante – Educação e Mobilização Social, organização responsável pela produção do levantamento, Costa reconhece que a demanda por brinquedos que reflitam a diversidade do público infantil é crescente e que o mercado tem se adaptado às mudanças: “o Brasil, finalmente, acordou para a demanda, as televisões acordaram, os jornais, a mídia. Eu acho que isso tudo é uma grande onda positiva e a indústria de brinquedos estará rapidinho ofertando o volume que o mercado quiser comprar”, afirma.
O fabricante com maior número de modelos de bonecas pretas possui 59 modelos em seu catálogo, a Candide Toys. O que equivale a 34,7% do total de modelos de bonecas ofertados. Apenas um fabricante possui mais modelos de bonecas pretas (52,8%) do que brancas em seu catálogo, a Trenzinho Brinquedos, com 17 brancas e 19 pretas.
A Milk Brinquedos, uma das empresas que integrou o levantamento, ofertou 71 modelos de bonecas, dos quais 26 são pretas, totalizando 26,8%, segundo o levantamento. De acordo com os diretores da empresa, Rafael e Diogo Leite, as vendas de bonecas pretas representam no portfólio da Milk uma proporção de 30% do mercado atendido, sendo que o Estado da Bahia responde a um total de 40% da venda de bonecas pretas.
“O mercado tem respondido positivamente e entendemos que ainda há espaço para crescimento. A representatividade de bonecas pretas no mercado de brinquedos é fundamental para a promoção da igualdade e da autoestima entre crianças pretas, permitindo que elas se vejam nas histórias que criam durante o brincar”, afirmam os diretores da empresa.
Autoestima e Infância
Ana Marcilio, psicóloga e consultora associada da Avante e uma das responsáveis pela coordenação do levantamento, aponta que estudos mostram que o processo de auto identificação, que acontece durante o processo do brincar, é fundamental para o desenvolvimento da autoestima das crianças. “A partir daí, é pensar que ter bonecas pretas é necessário para alcançar as ideias de diversidade, de valorização do sujeito, de fortalecimento da autoestima, das inter-relações pessoais e sociais da criança”, disse.
“Quando o modelo de beleza é centrado na branquitude é muito mais difícil a construção de uma autoestima positiva. Então, quando a gente está falando de bonecas pretas, estamos focadas na criança de hoje e de olho na mulher de amanhã”, enfatiza a psicóloga e publicitária, Mylene Alves, também responsável pela coordenação do estudo, em conjunto com Ana Marcílio.
O resultado do levantamento revelou que a classificação das bonecas por faixa de desenvolvimento revela que existem bonecas tipo bebê, criança e, também, bonecas adultas. A distribuição por cor entre esses segmentos é diferenciada para bonecas pretas e brancas. Observa-se que os modelos de bonecas pretas identificadas com a primeira infância, período de maior desenvolvimento da criança, e também muito utilizadas pelas crianças maiores nas brincadeiras, são bem menores do que as bonecas brancas.
Uma novidade do levantamento da Campanha Cadê Nossa Boneca? de 2023 é a variação fenotípica das bonecas, apresentando uma diversidade de marcadores identitários como: tons de pele, tipo de cabelo, nariz e boca. Pode-se perceber, por exemplo, que nos 13,6% há uma maior produção de bonecas com a pele marrom escura (69%) do que marrom clara (30%). Ao passo que nariz e boca ainda estão timidamente representados, com 3% e 2% da produção, respectivamente.
Histórico da Campanha
A representatividade no mercado de brinquedos é uma bandeira da Avante, que por meio da Campanha Cadê Nossa Boneca?, além de realizar o levantamento, produz conteúdo sobre o tema, oferece visibilidade a depoimentos de pessoas sobre a sua relação com bonecas pretas e bonecos pretos.
A Campanha nasceu como uma grande ação de conscientização via mídia social, que buscou sensibilizar a sociedade sobre a relevância da discussão sobre representatividade no mercado de bonecas, por estas contribuem para formação social e intelectual das crianças, que, desde muito cedo, são apresentadas aos papéis, às normas e espaços sociais reproduzidos em suas brincadeiras.
Desde o início da Campanha, poucos avanços foram registrados. O primeiro levantamento realizado junto aos fabricantes afiliados à Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos (ABRINQ), em 2016, revelou que a quantidade de modelos de bonecas pretas presente em seus portfólios representava apenas 6% do total das fabricadas. A oferta desses modelos em lojas online ficou em torno de 9% entre as comercializadas.
Em 2018, o levantamento apresentou que pouco havia mudado em dois anos: apenas 7% dos modelos fabricados eram de bonecas pretas. Em 2020, os números mostraram uma queda – aproximadamente 6% do total da amostra eram de bonecas pretas.
Metodologia
O levantamento atual foi feito entre outubro e novembro de 2023, por meio de análise dos catálogos disponibilizados nos sites dos fabricantes de bonecas associados à ABRINQ. O método utilizado é quantitativo e descritivo. Diferente das edições anteriores, não foram coletados dados referentes à revenda.
Foi possível aprofundar a análise das bonecas produzidas no que tange às características de faixa de desenvolvimento e características fenotípicas associadas à população preta, como mencionamos anteriormente.