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Historicidades, estéticas e culturas afrocêntricas na Educação Infantil de Salvador

Capital negra da América Latina, Salvador atualiza materiais pedagógicos com abordagem decolonial e potencializa experiências antirracistas nas escolas do município

“A nossa escola recebeu o nome em homenagem ao Bloco Afro Malê Debalê. O nosso maior objetivo é firmar a identidade de ser Itapuanzeiro nas crianças. Muitas delas não sabiam falar o nome do bairro, o que nele tem, sua história e cultura. Temos elaborado ações pedagógicas para que elas conheçam o seu território”. 

O relato de Patrícia Reis, gestora da Escola Municipal Malê Debalê, que atende crianças de 2 a 5 anos, no bairro de Itapuã, aponta para o que é e como se configura a educação decolonial. Em outras palavras, também citadas pela diretora da escola, esse conceito se traduz pela necessidade da população negra, indígena e cigana “conhecerem e se reconhecerem em sua história”, por isso, nessa escola, “os estudos dos povos originários e cultura africana são indispensáveis no fazer pedagógico”, completou Patrícia.

Com objetivo de contribuir para a afirmação do sentimento de pertença das crianças soteropolitanas e fortalecer a abordagem decolonial em salas de aula, a Secretaria Municipal de Educação de Salvador (SMED) tem realizado um trabalho importante de revisão dos materiais pedagógicos da Educação Infantil. O objetivo é que os materiais expressem as diversas territorialidades e culturas que constituem a cidade, de forma que os estudantes possam se reconhecer em cada uma das publicações. 

Numa cidade como Salvador, palco de revoltas históricas e com quase 500 anos de resistência, toda a sua paisagem cultural, geográfica e arquitetônica educam o olhar para a diversidade e mobilizam memórias ancestrais. A cultura manifestada em suas ruas e gentes, estéticas e culturas anunciam a relevância de uma educação decolonial, e é isso que tem ocorrido nas escolas da rede municipal, a partir de projetos que promovem a valorização das memórias e potências que a história da cidade preserva. 

Capital Negra

Considerada a cidade mais negra fora da África, a capital baiana é também a segunda cidade quilombola do Brasil e segunda capital indígena, perdendo apenas para Manaus (AM). A cidade abriga seis comunidades quilombolas, certificadas pela Fundação Palmares, e três ilhas. Toda essa potência cultural e histórica, entretanto, aciona uma força contrária pungente em suas estruturas sociais: o racismo.

  • Salvador (BA) reúne 14.727 quilombolas fora de territórios oficialmente delimitados. (IBGE, 2022).  De acordo com o artigo 2º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, os quilombos são “grupos étnico-raciais segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”. 

De acordo com Eduardo Santana, que atua na coordenadoria para as relações étnico-raciais da SMED, essa é uma conta simples de entender. “É exatamente nos lugares onde há uma pertença incisiva que a experiência racial e etnocêntrica precisa ser mais forte. Então, o racismo precisa estar um passo à frente, para não permitir que essas potências se tornem forças”, explicou. 

Para (re)afirmar a diversidade cultural de Salvador e vencer o jogo de forças imposto pelo racismo, a Educação é indispensável. É importante e necessário que os soteropolitanos, a começar pelas crianças, entendam o que significa pertencer a uma cidade negra, quilombola e indígena, e como esses aspectos históricos e ancestrais influenciam o presente. A sala de aula, os materiais e as práticas pedagógicas são fundamentais para ampliar compreensões, desconstruir pré-conceitos e promover leituras necessárias sobre passado, presente e futuro.

Dessa forma, os elementos que caracterizam a cidade precisam ser contemplados nas produções da Rede. “Se os materiais ainda trazem o indígena de cocar, pintadinho e imagens remetendo à oca, eles [os estudantes] vão dizer – Salvador não tem oca, não tem ninguém pintado, então não tem indígena”, argumentou Eduardo Santana. Segundo ele, os materiais podem até apresentar indígenas nesse formato, mas não aprisioná-los ao passado, à oca e à pena, e continua: “Esses materiais podem dialogar com essas historicidades, contemporaneidades, mas também com a possibilidade de ampliação de conceito. Conceito do que é ser Indígena, Aldeia, Quilombola, Negro, Africano”, reafirmou Eduardo, que também tem acompanhado a revisão dos materiais.

Materiais pedagógicos decoloniais

O processo de atualização dos materiais pedagógicos da Rede de Educação de Salvador tem se dado de forma participativa, com representantes das Gerências Regionais (GRE), integrantes da gestão escolar, crianças e famílias. 

  • Instância representativa da Secretaria de Educação, que funciona a partir de lideranças pedagógicas (gerentes) destinadas a acompanhar e apoiar escolas nos diferentes territórios da cidade.

Inicialmente, as crianças e famílias participaram e contribuíram por meio de rodas de escuta. Na etapa final, professores, coordenadores, gestores e gerentes regionais atuaram mais diretamente a partir dos grupos de trabalho (GT). 

Sheila Gaspar, diretora do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Arlete Magalhães, localizado no bairro de Roma (Cidade Baixa), participou dos GTs e afirmou: “uma das nossas preocupações é que a questão étnico-racial apareça de forma esclarecedora, para facilitar a abordagem do professor com as crianças; compreendendo que a Educação Infantil é a base e, portanto, uma etapa importante de formação sobre quem se é e como enfrentar questões como o racismo”. 

De acordo com Fátima Santana, que compôs o grupo de conteudistas dos materiais pedagógicos, é impossível pensar processos educativos sem considerar o fato de Salvador ser a cidade mais negra fora da África. Segundo ela, “o material específico para os professores [referencial teórico] visa oferecer a possibilidade de pensar os processos educativos escolares a partir de experiências afrodiaspóricas, africanas e afro-brasileiras. Existe um compromisso e uma tentativa de garantir que os diferentes territórios de Salvador estejam presentes”.

Educação Antirracista

No Brasil, de acordo com o Instituto de Referência Negra Peregum e Projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista), a escola foi apontada, em 2023, como o lugar onde as pessoas mais sofrem ou sofreram racismo.

A fim de corrigir as distorções do legado histórico colonialista, com subrepresentação das culturas africanas e indígenas nos sistemas educacionais, foi estabelecida, em 2003, a Lei 10.639, que inclui a história e cultura afro-brasileira no currículo escolar e, em 2008, a Lei n° 11.645, que prevê a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, ambas com a finalidade de promover a valorização da diversidade étnico-racial e combater o racismo.

Na escola, os casos de racismo se efetivam, principalmente, em função dos fenótipos negróides (cabelo crespo, pele retinta, nariz largo) e intolerância com religiões de matriz africana. Aspectos comuns e característicos à população soteropolitana, constituída sobre território quilombola. 

O cabelo crespo segue sendo um dos pontos mais comuns de conflito e também decisório para a autoestima das crianças negras. Para Sheila Gaspar, diretora do CMEI Arlete Magalhães, “identidade” é um tema fundamental a ser tratado com as crianças. Em sua escola, a temática é desenvolvida a partir de um trabalho que considera a necessidade de valorização do cabelo afro. “Nós procuramos trabalhar os penteados exaltando sempre o respeito e a beleza que há nas diferenças. As crianças que utilizam tranças e birotes são reconhecidas tão belas quanto as que têm o cabelo menos ou mais ondulado”. E os brinquedos, segundo a diretora, também refletem essa diversidade. “Nós temos na escola bonecas também com tranças e birotes, negras e brancas, para que as crianças possam ter contato com essa diversidade”.

Para além dos muros da escola, Salvador conta com três pilares importantes que reforçam o seu empenho em celebrar, promover e proteger a diversidade que lhe anuncia para o mundo e, assim, enfrentar o racismo de forma efetiva. 

Primeiro, o município conta com um aparato jurídico robusto, que inclui, segundo Eduardo Santana (SMED), “o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa (LEI Nº 9.451/2019), que conta com um capítulo só de Educação (Capítulo II, seção II); uma Secretaria Municipal de Reparação Racial (SEMUR) e, dentro dela, o Observatório antirracista no carnaval de Salvador. Do ponto de vista do arcabouço jurídico, Salvador tem uma boa atenção com as questões étnico-raciais”, avaliou. 

O segundo aspecto é a proatividade e engajamento dos professores da Rede. Segundo Eduardo Santana, “para além do que a Rede faz, há uma gama de professores que fazem o trabalho. Enquanto a gente está discutindo o antirracismo, já tem professores discutindo o afrocentrismo, que é outra discussão.”, enfatizou. 

  • Afrocentricidade – perspectiva que põe os sujeitos africanos e a África no centro de suas formulações, sejam elas políticas, filosóficas ou científicas. Surgiu em 1980 com a publicação do livro Afrocentricidade, de Molefi Kete Asante. Ser “afrocêntrico” é um compromisso social de “conscientização sobre a agência dos povos africanos”. Disponível em: A RELAÇÃO AFROCENTRISMO X AFROCENTRICIDADE: UMA BREVE CONSIDERAÇÃO 1 | zwanga nyack – Academia.edu

O Movimento Negro de Salvador consolida o tripé que caracteriza a potência da cidade como Capital Negra e que, segundo Eduardo, “provoca muita a Rede de Educação”. 

A soma desses três elementos, nas devidas proporções, confere a Salvador um passo à frente no combate ao racismo. “Eu não sei se em outro lugar do Brasil, esses pilares são tão vivos”, afirmou Eduardo.

Educação Escolar quilombola

Salvador tem três escolas quilombolas: Escola Municipal de Ilha de Maré, localizada na Ilha de Maré; Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, em Porto dos Cavalos, atendendo as comunidades Martelo e Ponta Grossa, e a Escola Municipal Bananeiras, na comunidade de Bananeiras. Importa destacar que para se autodeclarar quilombola, a escola precisa estar em território certificado pela Fundação Cultural Palmares.

Escolas em territórios quilombolas são regidas pela Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Em síntese, ela precisa dialogar com a comunidade quilombola, a partir do quadro docente, materiais didáticos e paradidáticos específicos. Eduardo Santana explica que “essa escola precisa ter mecanismos para que esse diálogo com a comunidade se constitua, inclusive, no próprio Projeto Político Pedagógico. Diferente de uma escola que recebe alunos quilombolas ou escolas que estão em bairros que já foram quilombos”.

Clétia Carvalho das Neves Paraguassu, diretora da Escola Municipal de Ilha de Maré, assegura que a cultura local, a ancestralidade e o empoderamento das crianças são propósitos que constituem o fazer pedagógico da escola o ano inteiro. Dentre as atividades dessa escola quilombola, estão: “jogos, brincadeiras, textos e histórias da cultura africana; Gincana Quilombola e Mostra Quilombola, que ocorrem anualmente; além de ações que exaltam a cultura e raízes dos nossos estudantes e comunidade”, elencou a diretora, que destacou ainda a implementação da Sala de Leitura, destinada à contação de histórias e experiências lúdicas, voltadas a temáticas antirracistas e ancestralidade.

Paulo Renato das Neves, líder comunitário em Ilha de Maré, acredita que a presença da escola pública na Ilha vem se fortalecendo, sobretudo, em razão do Plano Político Pedagógico Municipal.  Para ele, o “ensino praticado pela escola pública quilombola tem que voltar-se à realidade de cada comunidade em sua ‘essência cultural’. Vejo seriamente que a escola pública, de forma geral, precisa vivenciar diretamente as práticas e tradições culturais das comunidades quilombolas existentes, para que de fato a Educação Quilombola seja antirracista, inclusiva e afrocentrada”.

A Bahia foi o primeiro estado a discutir uma diretriz para a Educação Escolar Quilombola, e Salvador, como mencionado por Paulo Renato, “tem uma Diretriz Municipal específica”, validou Eduardo Santana. 

É preciso considerar que toda a cidade de Salvador se constituiu, historicamente, sobre território indígena e quilombola. Nesse sentido, Eduardo Santana defende a necessidade de ressignificar o conceito de quilombo, uma vez que no imaginário brasileiro quilombo ainda é sinônimo de Palmares. Segundo ele, é importante entender que Palmares “foi uma experiência, mas nós temos diversas experiências quilombolas diferentes, e indígenas também. Eu penso que os materiais pedagógicos podem dialogar com essas historicidades dos bairros que já foram quilombos”, argumentou.

Avanços necessários

Embora tenham ocorridos avanços importantes, sobretudo após a aprovação das leis de 2003 e 2008, a compreensão e valorização da ancestralidade indígena, em Salvador, ainda não se deu na mesma proporção que a africana, sobretudo, no que se refere à construção identitária da cidade.

“Penso que ainda precisamos avançar nas discussões indígenas mesmo, mas não é só o indígena contemporâneo, é pensando nessas ancestralidades de presença e pertenças dentro da cidade de Salvador. Salvador é uma cidade cercada de aldeias, praticamente, né? É preciso retomar a história dos caciques, das lideranças indígenas femininas, inclusive. E aí, na esteira desses hiatos, eu penso que também para as questões relacionadas com a educação quilombola, elas precisam ‘vamos dizer assim’ – também ter uma voz”, ressaltou Eduardo.

Em contrapartida, vale considerar que, para além das diretrizes nacionais e tudo o que já foi mencionado, a Rede Municipal de Educação de Salvador introduz nos seus projetos educacionais elementos muito específicos, que dialogam com as diferentes formações territoriais e populacionais da cidade. Os professores da Rede contam com uma espécie de referencial, que reúne materiais teóricos importantes para subsidiar aulas com ênfase no território local. Nessa pasta contém, por exemplo, a Revolta dos Búzios, a Revolta dos Malês, conflitos pela Independência da Bahia, ou seja, episódios históricos ocorridos em Salvador. 

A Educação de Salvador não poderia deixar de considerar o que diz cada canto do seu território sobre o passado, presente e futuro. Pirajá, Piedade, Liberdade, Lapa, Pelourinho, Cajazeiras, Beiru, Itapuã – bairros emblemáticos que contam a história da cidade, da Bahia e do Brasil – territórios que foram quilombos; aldeias; esconderijos; palcos de batalhas e revoluções; cujas historicidades e contemporaneidades, culturas e estéticas reafirmam a decolonialidade que constitui o território soteropolitano e deve atravessar a formação dos seus sujeitos. 

“Muitas das nossas crianças pertencem ao “Malezinho “. Lá eles dançam, participam da banda e de oficinas. Não existe falar de Itapuã e não falar do Malê Debalê. As crianças já visitaram o bloco, o bloco participa de alguns convites da escola e assim vamos construindo e formando nossa identidade”, concluiu Patrícia Reis. 

Uma resposta

  1. A historialidade e brasileira começa nos grandes quilombos que existiram e ainda é existem nos dias de hoje, seja eles rurais ou urbanos. Portanto uma Educação Quilombola para as escolas públicas do Brasil não pode deixar de ser antirracista, inclusiva indígenas e afrocentrada.💪🏿🙌🏿✊🏿

    Renato das Neves Paulo✊🏿

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