Avante

Como planejar uma Salvador para a Primeira Infância?

Temos cerca de 178 mil respostas para essa pergunta. O número corresponde à população de 0 a 6 anos da capital baiana, e abriga as necessidades e os anseios que cada uma delas têm para a cidade em que desejam crescer.

Sujeito de direitos e prioridade absoluta na formulação e execução das políticas sociais públicas, como asseguram o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Federal, a criança tem a legitimidade e a criatividade necessárias para auxiliar os adultos na construção de uma cidade sustentável, equânime e segura para todos os cidadãos. 

Promover a participação infantil, portanto, implica trazer a criança para o centro da tomada de decisão, como defendeu Ana Marcilio – consultora associada e diretora de sustentabilidade da Avante – Educação e Mobilização Social, na audiência pública para discussão do Plano Municipal pela Primeira Infância (PMPI) de Salvador, no último 15 de julho. 

“O adulto tem uma visão adultocêntrica. As nossas decisões para as infâncias são prismadas pela nossa forma de ver o mundo. A ideia é que as crianças nos ajudem a ver o mundo da forma delas”, afirmou Ana Marcilio, que é também especialista em participação infantil.

Uma cidade planejada para proteger e promover os direitos das crianças, além de assegurar a escuta qualificada desses sujeitos e de suas famílias, precisa mobilizar, de forma intersetorial e integrada, políticas públicas que considerem as demandas das diversas infâncias que compõem o território – princípios que definem a relevância e escopo do PMPI.

Audiência Pública

A mesa de abertura foi composta pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude (SPMJ), Defensoria Pública, Ministério Público da Bahia e a Avante – Educação e Mobilização Social.

O evento, que teve 250 inscritos, reuniu presencialmente um número maior de participantes e contou ainda com a participação do Ministério Público, UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), AMAPE (Associação de Mães, Amigos e Pais Extraordinários), entre outras instituições.

Durante a plenária, Márcia Rabelo, promotora de Justiça da Infância e Juventude do Ministério Público do Estado da Bahia, destacou a preocupação especial com as iniciativas de apoio à parentalidade. “Nós temos uma preocupação grande de que esse plano traga ações que visem ao fortalecimento de vínculos familiares, entre eles, o aperfeiçoamento e ampliação do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social ) – serviços destinados, inclusive, a cuidar dessas famílias para que não ocorram violações”.

Ela também falou da necessidade de ampliação da modalidade Família Acolhedora – para crianças afastadas judicialmente de suas famílias; e de implementação da guarda subsidiada – para que a criança, não podendo ficar com seu núcleo, possa estar com a sua família extensa, recebendo um subsídio do poder público. “Dessa forma, ela manterá seu vínculo familiar e comunitário preservados, na medida do possível”, enfatizou.

A promotora destacou ainda a necessidade de fortalecer a atuação da comissão do orçamento da Criança e do Adolescente, a formação continuada dos conselheiros tutelares, e pontos específicos às áreas da Educação e Saúde, entre eles, o teste do olhinho e o atendimento especializado educacional.

Joseane Oliveira Silva, fundadora da AMAPE – Associação de Mães, Amigos e Pais Extraordinários, chamou a atenção para as carências da cidade no atendimento às crianças com deficiência. “Salvador precisa primeiro virar uma cidade acessível, do transporte público aos passeios e calçadas. Os parques, por exemplo, não têm brinquedos adaptados, com exceção do Parque da Cidade. As praças municipais também não são acessíveis. Toda criança é vulnerável, mas uma criança com deficiência é ainda mais. Salvador precisa mudar muito, principalmente na Educação, na Saúde, na acessibilidade e nos equipamentos de lazer”. 

PMPI 

O Plano Municipal pela Primeira Infância consiste num instrumento técnico e político que direciona e mobiliza investimentos para as crianças de 0 a 6 anos. Sua elaboração estipula metas e ações para um período de 10 (dez) anos, sem deixar de considerar as demandas mais urgentes e a alternância do poder executivo a cada quatro anos.

A elaboração do PMPI da cidade de Salvador aconteceu em 2020, e contou com um grupo diverso – tanto da sociedade civil quanto das secretarias municipais. As reuniões remotas, por conta da pandemia da Covid-19, foram coordenadas, à época, pela Secretaria de Políticas para Mulheres, Infância e Juventude. No entanto, o contexto pandêmico e, principalmente, a mudança da gestão municipal em 2021 (que provocou a substituição de inúmeros secretários), travaram a implementação do Plano.

Passados cinco anos, verificou-se a necessidade e urgência de atualizar os indicadores descritos no PMPI, acrescentar novos eixos temáticos previstos no Plano Nacional pela Primeira Infância e realizar uma nova escuta da sociedade civil para a sua reorganização.

A missão de atualizá-lo, agora, está a cargo do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) – sob a presidência de Dinsjani Pereira – que realizou, em 15 de julho, audiência pública para ouvir representantes sociais engajados com a pauta das crianças.

Para esta nova etapa de atualização, Ana Marcilio, além destacar a importância de escuta das crianças e suas famílias, abordou em sua fala  a necessidade de observar os inúmeros aspectos que compõem um planejamento urbano apto a atender as infâncias soteropolitanas, como: transporte público acessível para as crianças; arborização da cidade; redução da velocidade dos carros; reestruturação das calçadas; ampliação do limite de tempo nas faixas de pedestres; mais escolas de tempo integral; segurança pública qualificada; além de exemplificar os desafios das crianças periféricas, a partir do relato audiovisual das crianças da Ocupação Quilombo do Paraíso, no Subúrbio Ferroviário.

“Com a diversidade de territórios que Salvador tem, obviamente, ela tem também uma diversidade de infâncias e diferentes formas de vivenciar os 0 a 6 anos, que estão intimamente ligadas aos seus bairros, às suas comunidades. Então, territórios violados, infâncias violadas. É preciso olhar para as potencialidades e problemas desses territórios, a partir da perspectiva dessas crianças”, ressaltou Ana Marcilio.

No momento da participação da plenária, representantes de diversas instituições complementaram a apresentação de Ana Marcilio, com demandas igualmente relevantes, como: a ampliação do número de creches; garantia de transporte público e gratuito para os moradores das ilhas; medidas eficazes de proteção das crianças contra os diversos tipos de violência; atenção prioritária dos sistemas de educação e saúde para crianças com deficiência; ouvidoria qualificada para as crianças nas repartições públicas; e equipagem de conselho tutelar.

Desafios 

Delimitada por 163 bairros, incluindo três ilhas – Maré, Frades e Bom Jesus dos Passos, Salvador não esconde os contrastes e desigualdades sociais que vulnerabilizam, sobretudo, as infâncias periféricas.

Dividida geograficamente em duas partes – Cidade Alta – marcada por diversidade cultural, com amplo acervo museal, e Cidade Baixa – com suas praias e parques, que ainda preservam áreas de Mata Atlântica – Salvador não acolhe as suas crianças como deveria, por isso, crescer na capital baiana pode significar, para muitas crianças, experienciar uma infância violada.

A audiência pública, portanto, reforçou a urgência da atualização e implementação do PMPI de Salvador, para que a cidade cumpra, a partir do foco na primeira infância, todo o potencial que caracteriza a sua cultura, sua geografia, seus territórios e sua gente.

Nesse sentido, o PMPI materializa o compromisso político de assegurar às crianças o direito à infância e à vida, uma vez que, não é dada a muitas delas a possibilidade de crescer, como conclui Ana Marcilio.

“A gente mata muito cedo o sonho das crianças. A gente impede o sonhar das crianças pelo racismo, pela violência de gênero, de classe, pela falta de garantia dos direitos. Seus sonhos são simplesmente rasgados e jogados fora. Para muitas crianças, não é garantido o direito de sonhar, nem de brincar. Às vezes, nem de crescer, porque muita gente morre antes de crescer”. 

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