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BNCC, uma jornada democrática por uma Educação de qualidade?

A demanda por uma referência de currículo nacional não é nova no Brasil. A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 210, já previa a definição de conteúdos mínimos que assegurassem uma formação básica comum e o respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996) também evidenciava a necessidade da criação de uma base comum. Lançadas em 2009, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) detalharam os caminhos para a construção deste documento – a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

É consenso que o documento não é solução para a Educação do País, mas pode ser promotora de diretrizes mais claras para o ensino, facilitar na continuidade dos processos de aprendizagem, auxiliar na promoção de igualdade e gerar impactos na formação de professores. No entanto, em sua terceira versão, a BNCC tem sido foco de algumas polêmicas. E uma delas é o fato de que um documento que vinha sendo construído a partir de um processo democrático, passou a ser revisado a portas fechadas, sofrendo alterações que vêm sendo questionadas pela sociedade e pelos especialistas que participaram da sua elaboração.

Recentemente, integrantes do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB) e da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), da qual a Avante – Educação e Mobilização Social integra o Grupo Gestor, reuniram-se com os conselheiros da Câmara de Educação Básica, além do presidente da Comissão da BNCC, saindo de lá com grandes expectativas de que a Base recupere concepções e itens perdidos na terceira versão e inclua itens sugeridos.

Para aprofundar o assunto, conversamos com a especialista em Educação e presidente da Avante, Maria Thereza Marcilio, que participou de diversos encontros voltados às discussões sobre as três versões do documento.

*A base tem provocado polêmica desde o início de sua elaboração. Alguns acreditam, inclusive, que ela nem deveria existir. Os argumentos são variados, entre eles, que a base desvia o foco das outras necessidades da Educação brasileira, limita a autonomia das escolas e profissionais, e foca nos interesses para atender ao mercado de trabalho. Qual a sua opinião sobre isso?

Maria Thereza: Penso que estes são argumentos extremos e que trazem alguns pressupostos que a meu ver não se sustentam. A Base é um instrumento para a equidade. Ela existe para dizer o que cada segmento deve oferecer como possibilidade de aprendizagem e desenvolvimento para as crianças. Isso é fundamental, caso contrário, você vai ter escola de pobre, escola de rico, escola de índio, escola de branco, escola de negro, porque cada um vai fazer do seu jeito.

A Base Nacional Comum Curricular não é um currículo único para o Brasil todo. O currículo vai ser feito lá, no Estado para Ensino Médio e nos municípios para Educação Infantil e Ensino Fundamental. E a proposta pedagógica é para ser feita na escola. É preciso entender que a Base não é um instrumento que o professor vai ler e dali tirar a sua prática pedagógica. Ele vai fundamentar a sua prática cotidiana, isso sim. A Base é um documento orientador dos técnicos e das secretarias para elaboração dos currículos.

O que a gente deseja é que os currículos sejam feitos com participação, com escuta da comunidade, da Academia, dos professores que estão nas salas, dos diretores, das famílias. Da mesma forma que se fez com a Base, até a segunda versão. E esse é um documento que vai ser fundamental para isso.  Lógico, é ótimo que chegue às mãos dos professores, porque se a gente quer que eles participem da proposta curricular dos seus municípios, ou dos seus estados, eles precisam conhecer a Base.

A BNCC é comum no sentido de dizer que a criança lá de Manaus, a do Oiapoque, a de Chuí, a de Salvador, a de Campo Grande, todas têm que ter aqueles elementos no seu repertório. O documento oferece diretrizes às escolas, inclusive as particulares, e isso é equidade. Então, esses argumentos, de que a Base não deveria existir, para mim, não se sustentam.

* Como você avalia o processo de elaboração do documento da Base Nacional Comum Curricular?
Maria Thereza: Nós estamos vivendo um momento de encaminhamento e aprovação da Base. O que tinha que ser feito, do ponto de vista de MEC, de consultorias e escutas, já foi feito. Até o ano passado, as discussões redundaram na versão 2 do documento, fruto de muita discussão pública, de muitos ajustes, de muita consulta a especialistas convocados pelo MEC, para a construção das duas primeiras versões. A Avante, inclusive, participou, representada por Mônica Samia, consultora associada da instituição.

Já a passagem da segunda versão para a terceira foi um empobrecimento, desconsiderou todo esse caminho que vinha sendo percorrido, comprometendo um modelo de escuta e participação que vinha sendo proposto. Não quero dizer que a segunda versão fosse perfeita, não, nunca pensei isso. Acho que a Base, como um todo é um documento que tem que ser revisto, que tem que ser atualizado. Se o mundo caminha, a Base também tem que caminhar. A segunda versão foi o que todo mundo que se envolveu nessa discussão: Academia, os professores de sala de aula, diretores de escola, o público de modo geral, além dos consultores, conseguiu acordar naquele momento. Precisava melhorar? Lógico que precisava.
Mas a terceira versão foi feita dentro do gabinete. Nenhum dos consultores convocados para contribuir nas duas primeiras versões do documento foi consultado. A Base passou para as mãos de um grupo de pessoas que ninguém sabe quais critérios usou, que não tinha participado das duas primeiras versões, e que fez mudanças que subvertem a proposta da BNCC.

* Mas há um movimento sendo feito para garantir a proposta inicial, certo?

Maria Thereza: Os movimentos, as instituições e as redes têm se organizado para mostrar o que não pode sair da Base, o que não pode mudar e o que é interessante inserir. Nas audiências públicas, por exemplo, a nossa luta tem sido garantir espaço de fala para dar o nosso parecer, e as falas das instituições, dos especialistas, estão muito alinhadas. No entanto, esse é um formato de participação que tem tempo restrito de fala e nenhuma discussão.

A RNPI [Rede Nacional Primeira Infância] fez um documento se posicionando, o MIEIB (Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil) também fez um, a ANPED (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) também. Esses documentos estão muito coerentes um com o outro. A ideia é que eles cheguem ou Conselho Nacional da Educação (CNE).

*Quais pontos foram mais mexidos e mais comprometeram a proposta da Base?
Maria Thereza Marcilio: Por exemplo, tiraram o Ensino Médio, o que já é um equívoco, pois ter uma Base Nacional Comum Curricular que não envolve toda a Educação Básica é um contrassenso. Ficaram Educação Infantil e Ensino Fundamental.

No que diz respeito à Educação Infantil, que é o segmento que temos maior ligação, eles tiraram uma grande parte da fundamentação sob o argumento de que era muito teórico e pouco prático, muito redundante, como se teoria fosse algo desprezível. Ainda assim, não era só isso, era fundamento da Educação Infantil dentro da Educação Básica do País.

Para que fique claro que a proposta da Base não é ser um currículo para a sala de aula, ela precisa estar fundamentada. E foi retirada toda a parte que relaciona os direitos de aprendizagem à proposta da Base. Ou seja, toda a parte que dava sustentação teórica, ampliava a ideia de Educação Infantil como direito e fazia toda a relação com as diretrizes curriculares e que, ao mesmo tempo, a tornava um instrumento de equidade e democrático. Isso, para mim, é o mais grave.

* Quais foram esses fundamentos?

Maria Thereza: O documento trazia, por exemplo, uma explicação de porque o Brasil resolveu investir num currículo para todos; porque determinar diretrizes para crianças de 0 a 6; porque de 0 a 3 é criança de creche; porque de 4 e 5 é de pré-escola, e foi tudo suprimido do documento, sob a alegação de que, por ser muito teórico, os professores não iriam ler.

Os trechos de fundamentação da Educação Infantil que foram retirados provocam um esvaziamento no que se refere à compreensão de um segmento relativamente novo na área da Educação, visto que, antes da LDB/96, o segmento era responsabilidade da assistência social; a mudança de perspectiva tem sido gradativa. Isso impacta diretamente na relação entre educar e cuidar na Educação Infantil, algo muito delicado, porque o cuidado sempre foi relacionado à assistência, e o educar é outra coisa.

A consequência disso é a iniquidade do ponto de vista profissional, pois, sob essa perspectiva, quem educa é o professor, quem cuida são os auxiliares, promovendo, dentro da escola, uma ideia de que toda a parte de higiene das crianças, de lidar com seu corpo, deve ser feito por um profissional, que, supostamente, não precisa ser especializado. E a parte acadêmica ficaria com o professor.

No entanto, nós já sabemos que a criança pequena aprende de formas variadas, e que o corpo é um aspecto fundamental dessa aprendizagem. Então, tudo que é considerado do âmbito do “cuidado”: o banho, a troca de fralda, a alimentação, o sono, também tem um conteúdo educativo, na educação tem que ter cuidado. Promover esse entendimento tem sido um trabalho enorme e incluir nas primeiras versões essa fundamentação, do porquê educar e cuidar ser um binômio indivisível da Educação Infantil, foi uma conquista. Na terceira edição foi tudo retirado.

*O que você apontaria como uma das grandes avanços da BNCC?

Maria Thereza: A inserção dos Campos de Experiência que, por entender que a experiência, que a ação, para a criança, é fundamental, a aprendizagem se dá por meio de diferentes linguagens, colocando a criança no centro do currículo, subvertendo a lógica disciplinar de estruturação do conhecimento. Apesar dessa proposta já ter sido anunciada desde a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) [Parecer nº 20/2009], esse é um conceito muito novo.

Por isso, mais uma vez, precisava de explicação, de suporte teórico, pois pode dar margem a mil outras interpretações. E esse foi um dos cortes feitos nas fundamentações relacionadas à Educação Infantil, e essa foi outra perda. Um avanço e uma perda.

*Na audiência pública sobre a BNCC, que aconteceu em Recife no final de julho, a Avante sugeriu a manutenção do título original do quarto campo de experiência: “escuta, fala, linguagem e pensamento”, argumentando que a mudança para “oralidade e escrita” provoca um maior foco na escolarização. Você poderia aprofundar o tema, por favor?

Maria Thereza: A necessidade de foco na oralidade e escrita, porque a Educação Infantil tem que ajudar no processo de alfabetização, foi um dos argumentos para a mudança do título do quarto campo, como se na segunda versão não houvesse esse foco. Tinha, só que com outra proposta.

O primeiro título: “escuta, fala, linguagem, pensamento e imaginação”, está mais relacionado à expressividade da criança e considera que, primeiro, a criança é escutada, para então aprender a escutar, pressupondo que essa escuta é alimentadora das múltiplas linguagens, entre elas a linguagem escrita.
O que nós sugerimos na audiência pública é que se mantenha o primeiro título, ou que seja acrescentado a ele, “oralidade e escrita”, ficando: “escuta, fala, linguagem, pensamento, imaginação, oralidade e escrita”. Denominar este campo de oralidade e escrita, apenas, reduz a abrangência de entendimento de que a criança se expressa de mil outras maneiras e reforça a conotação de escolarização.

O texto, em si, não foi muito mexido, mas só de você mudar o título, para um segmento que recém começou a compreender que a criança aprende brincando, que a criança deve ser o centro, que a criança se expressa por múltiplas linguagens, e dar essa ênfase para a oralidade e escrita, provoca um retrocesso, referendando práticas com as quais estávamos rompendo. Pra quem já achava que devia fazer isso, vai ser muito bom.

*Outro campo que sofreu alterações foi o segundo: “corpo, gestos e movimento”. Mas dessa vez foi conceitual. Qual o comprometimento dessas mudanças?

Maria Thereza: Na segunda versão, o que estava posto era algo muito mais amplo, no sentido de considerar o corpo uma expressão da criança, e o movimento ser uma coisa que tinha que ser integrado. Na terceira versão, ele fica reduzido quase que à coordenação motora, à psicomotricidade, como se fosse um apêndice da criança, quando o corpo é tão fundamental.

*A Política de Educação Infantil dos municípios terá que se alinhar à proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as secretarias municipais começam a se mobilizar nesse sentido, mas o documento ainda não chegou a sua versão final. Em sua opinião, qual seria o melhor caminho na promoção desse alinhamento, considerando a última versão do documento que temos em mãos?

Maria Thereza: A terceira versão? Sem ter mais nenhuma reformulação? Eu acho que não existe uma Base ainda, o documento só vai ser sacramentado depois do Conselho Nacional de Educação sancionar. Acredito que até o final do ano. Até lá, minha sugestão é trabalhar com a Base no que ela tem de comum nas duas versões, a segunda e a terceira. Tem muita coisa que mudou e é importante que as pessoas se deem conta disso. E há outras que não mudaram tanto e são importantes para fortalecer os fundamentos, pois sem isso, o entendimento fica comprometido, como já disse.

No momento, eu acho que o mais importante é fazer uma discussão sobre porque a gente está fazendo toda essa discussão sobre as segunda e terceira versões, porque há tanta mobilização em torno disso. Uma discussão de crescimento intelectual e profissional. Ler a Base, comparar as duas versões. Ler os documentos enviados ao Conselho, que estão disponíveis para o público e devem fomentar estudos e conversas. Eu me preocuparia muito mais com isso do que com, agora, dizer: vamos seguir a Base. Não tem Base. O Conselho não disse ainda qual é a Base.

*E se o Conselho sancionar a terceira versão sem levar em conta nada do que foi dito nas audiências, nos documentos que foram enviados?

Maria Thereza: Eu acho que cabe aos municípios e aos estados, uma mobilização. Dizer – a gente vai fazer isso, isso e isso. E a gente gostaria de continuar discutindo isso, isso e isso.  A Base não é um documento para todo e sempre, amém. Ela pode ser revista. Ela pode, não, ela deve ser revista.

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