“Lá em casa vai trabalhar do nascendo ao caducando” (…) “Se ficar doente, a gente que tem que bancar com os custos. (…) “Aqui não temos trabalho escravo, as pessoas saem para trabalhar nas colheitas de café(…)”. “Aqui só tem trabalho bom. Não tem trabalho escravo”. (..). “Tem muitas pessoas que saem daqui para o café, mas é tudo certinho” (…). Os depoimentos retratam algumas contradições que aparecem nas falas dos entrevistados para o Diagnóstico situacional do trabalho análogo ao escravo em Aracatu, localizado no sudoeste baiano, contribuem para enevoar a visão e tornar pouco clara a existência do trabalho degradante no município. Os dados levantados e compilados pela equipe técnica da Avante – Educação e Mobilização Social revelam uma população exposta a situações caracterizadas como trabalho análogo ao escravo, repetindo um ciclo de pobreza entre gerações e desconhecimento de seus direitos.
O Diagnóstico aponta que a maioria desses trabalhadores são do sexo masculino, analfabetos ou com baixa escolaridade, oriundos de famílias vitimadas pela extrema pobreza, a maioria egressa do trabalho infantil – tendo deixado a escola muito cedo e tendo sua infância roubada pelo trabalho precoce. Com pouca ou nenhuma qualificação, a situação é agravada pelo aumento do nível de desemprego no País. Homens, mulheres e até crianças submetem-se a condições degradantes, incompatíveis com a dignidade humana, além de jornada exaustiva e servidão por dívida. Elementos descritos no Código Penal Brasileiro, artigo 149, que caracterizam o trabalho análogo ao escravo, e significam a violação de direitos fundamentais e risco a saúde e a vida do trabalhador. Importante esclarecer que nem sempre vêm associados um ao outro.
O Diagnóstico Situacional atende a uma das demandas do projeto Vozes da Comunidade no combate ao trabalho análogo ao escravo, realizado pela Avante em parceria com a Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (SETRE/Agenda Bahia do Trabalho Descente), e sob financiamento do FUNTRAD.
Oportunidade X direitos
Embora a cidade ocupe a segunda posição no ranking dos municípios baianos de origem dos trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão, conforme estudo realizado pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), em 2016, as pessoas, em extrema vulnerabilidade, têm dificuldade de perceber essa condição, identificando esse tipo de trabalho como uma oportunidade.
Ainda segundo a SEI, existe no município uma cultura de trabalho sazonal nas colheitas, antes com o algodão e hoje em dia com o café. A quantidade de pessoas que saem de Aracatu para trabalhar em outros estados e municípios é bastante expressiva e acontece de forma recorrente a cada ano. A maioria vai para os Estados de Minas Gerais e São Paulo, embora alguns saiam para Barra da Estiva (Bahia) e Espirito Santo. Em entrevista coletiva realizada durante a audiência pública no município, para apresentação da proposta do Projeto à comunidade, autoridades locais relataram conhecimento da realidade: “saem uma média de 2.500 a 3.000 pessoas por ano para as colheitas. Os 70 resgatados, perante a quantidade de pessoal que sai, são poucos casos”, segundo depoimento registrado no Diagnóstico.
Inicialmente, os depoimentos revelarem invisibilidade em relação ao problema no município: “aqui nós não temos casos de trabalho assim”. “O café é para a melhoria e não para sobrevivência, para construir uma casa, comprar um carro. Tem fatores positivos e negativos também. Onde o capital chega, tem problema também”. Apesar disso, houve receptividade e validação do Projeto entre os entrevistados, tanto por parte da gestão municipal, quanto por parte dos trabalhadores e à medida que os relatos se aprofundavam as revelações das condições que enquadram o município como fornecedor de força de trabalho para situações análogas ao escravo iam surgindo.
Condições degradantes
Uma das mulheres entrevistadas para o Diagnóstico conta que trabalhava na colheita do café, revelando precariedade das condições em que vivia: “foi tipo senzala. Tinha um quartinho, ficaram todos nesse quarto – dois casais e uma mulher sozinha. Em outro espaço só os rapazes. Banheiro era um só, precisava esperar os outros para tomar banho. (…) Eu levava a comida gelada e comia lá durante o dia. À noite, quando chegávamos, é que ia comer de novo. (…) Na primeira vez fiquei traumatizada, um rato entrou dentro da minha calça pela perna. Tinha muito rato lá, tenho muito medo. Não tinha banheiro na plantação, às vezes achávamos cobra em baixo do pano”, disse. Hoje, essa mulher é concursada e se diz aliviada por não precisar mais ir às colheitas.
Alguns depoimentos revelaram, inclusive, risco a saúde e servidão por dívida: “se ficar doente, a gente que tem que bancar com os custos. Se precisar parar porque fica doente, só ganha um salário os que são registrados. Se não, fica sem dinheiro até para comer, porque a comida é cara e fica sem dinheiro até para voltar”.
Vozes da Comunidade no combate ao Trabalho análogo ao Escravo
O Projeto elaborou Diagnóstico Situacional do Trabalho análogo ao Escravo nos municípios de Teolândia e Aracatu (BA), com vistas a contribuir para o enfrentamento e erradicação da problemática no estado e para a formulação e implementação de políticas públicas que atendam às necessidades da população.
No dia 19 de setembro, foi realizado o seminário de devolutiva em Aracatu, apresentando ao município os resultados do diagnóstico, com presença secretário de educação, técnicos da prefeitura, representantes da sociedade civil, CRAS e CREAS. Em outubro será realizada a devolutiva em Teolândia, e já em dezembro haverá um encontro com a SETRE, a COETRAE, o Ministério Público do Trabalho e representantes dos municípios, entre outros atores de transformação.