Fonte: Fórum de Combate à Violência
De quem é a rua? Alguém pode responder a essa pergunta, assim: é de todo e qualquer cidadão! Outra pessoa pode complementar: é um espaço público! Mas, outro vai rebater: a rua é dos automóveis! Um terceiro pode contra-atacar: a rua é de quem pode mais!
Dividida entre potentes e impotentes, da rua tem sido retirada a abrangência, a ideia de espaço válido para todos. As calçadas, que devem ser lembradas como espaço que compõe as vias públicas e servem aos pedestres, têm funcionado como áreas para estacionamento e, muitas vezes, são lugares ocupados por ambulantes. A figura do pedestre é sucumbida às nesgas que separam bancas, carros e objetos não identificados que surgem no trânsito. E assim, cada vez mais andar a pé pelas nossas cidades é correr riscos.
O primeiro e quase infalível risco é de ser desrespeitado por todos os que portam capacidade motora superior à humana. Depois deste risco certeiro, a pessoa está exposta a toda sorte de “fatalidades” que vão da alta velocidade, passam pelas ultrapassagens em sinais vermelhos e pelas “roubadinhas” dos carros dirigidos na contramão. Muitas vezes, ao lado destas práticas ilegais, os condutores dos veículos falam ao celular e guiam em estado de embriaguez.
Se as coisas são assim, podemos constatar que rua não é de todos, embora necessitemos dela para viver em território urbano. Ela parece pertencer à grande velocidade e, vez por outra, dá carona a um carro lento, a uma irresponsável bicicleta que decide levar a sério a faixa de ciclista.
Em plena madrugada de 10 de março de 2013, o jovem limpador de vidros, Davi Santos Souza pedala a sua bicicleta em direção ao seu trabalho e é atropelado por um carro na famosa Avenida Paulista. O motorista, Alex Kozloff Siwek, estudante de psicologia, continua a viagem e quando chega ao destino descobre ter transportado um dos braços de Davi. Surpreendido, Alex vai a um córrego na Avenida Ricardo Jafet e joga o braço na água. Enquanto isso, Davi é socorrido por transeuntes que testemunharam o acidente. A equipe médica do hospital precisa do braço que fora decepado para reimplantá-lo. E é aí, neste ponto, que a história assume peculiaridade. Davi não é um atropelado qualquer, ele é aquele teve o braço “usurpado” por seu atropelador. É identificado midiaticamente pela imagem da falta de uma parte sua que fora subtraída como coisa imprestável, um bagulho que pode criar problema a quem o porta.
O desfalque do braço deu ao caso uma potencialidade a mais em comparação com os atropelados que mantêm seus membros, ainda que destroçados, reunidos sobre o asfalto. No rumor das ruas, nos papos cotidianos já foi incorporada a referência: vocês já viram o caso do braço do rapaz?
Separado do corpo, o braço se torna uma alavanca que faz movimentar a mídia e a opinião pública. A sensibilidade alcança o nível de força coletiva em forma de indignação. O braço ausente denuncia mais que a velocidade que deitou a bicicleta e Davi. Trata-se de uma falta que retira créditos do motorista do carro e os transfere ao ciclista atropelado, tornando nítidas as posições de vítima e de agressor. Perdido no córrego, o braço opera uma distinção crucial na percepção moral do acidente.
A triste história conquistou notoriedade maior que os acidentes de trânsito regularmente observados nas vias urbanas e estradas do País. Esta intensidade por parte da atenção midiática evidencia que a alta produção de acidentes dentro de padrões habituais consolidou-se como ocorrências básicas, afeitas a estatísticas e a notas miúdas nos meios de comunicação de massa. E assim, placidamente, como as águas dos rios, passam feridos e mortos às margens da mídia. Cabe, então, recordar que o comportamento do condutor ao atropelar Davi está dentro do modelo padrão. Talvez a embriaguez basilar não lhe tenha permitido desvencilhar-se do “objeto estranho” na zona de aproximação do corpo. Quem sabe ele estivesse fugindo, procedimento já clássico nestes episódios, e, na pressa, não pode devolver o braço ao corpo. E foi assim que a sua irresponsabilidade tornou-se visível. Espera-se que o motorista não pense que o seu “único erro” tenha sido um braço lançado às águas.