
O Ministério de Direitos Humanos registrou mais de cinco mil violações de cunho racial, somente em 2024. O dado reflete a problemática do racismo que, ao incidir sobre a população majoritariamente negra do país, potencializa desigualdades sociais e vulnerabiliza, sobretudo, crianças e adolescentes periféricas, que são impedidas de acessar plenamente os seus direitos.
A informação se ratifica com o relato de Rodinei (nome fictício, para resguardar a identidade da criança), 9 anos, morador da Baixa do Tubo, que compartilhou ter sido alvo de racismo em sua escola. O menino, que participou de grande parte da programação do evento: “Diálogo sobre Racismo e Intolerância Religiosa”, realizado na praça do Sucuiú, no dia 08 de outubro, afirmou timidamente que se sentiu mal na ocasião e que só conseguiu falar sobre o assunto com a sua mãe.
Promovido para discutir o tema e conscientizar a comunidade da Baixa do Tubo – situada na periferia de Salvador (BA), a ação pública reuniu, pelo menos, 200 crianças e adolescentes, e integrou a programação especial do Mês das Crianças. O evento foi realizado pela Rede de Atenção Local à Criança e ao Adolescente da Baixa do Tubo, em parceria com o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Nelson Mandela, vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi).
A Rede é uma articulação da Avante – Educação e Mobilização Social, por meio do projeto Foco nas Infâncias – defesa de direitos na Baixa do Tubo do Coqueirinho, e reúne o Instituto Daniel Comboni, a Fundação Cidade Mãe, a Associação Atlética Banco do Brasil, por meio do projeto AABB Comunidade, e a Fundação Lar Harmonia, em defesa das crianças e adolescentes da comunidade.
A presença do Centro de Referência Nelson Mandela no evento da Baixa do Tubo foi relevante pelo trabalho que a instituição pública promove sobre o racismo, mas também sobre intolerância religiosa. “A intolerância religiosa atravessa muito essa comunidade que tem uma predominância de igrejas evangélicas”, enfatizou Joice Cristina Santos, assistente social do projeto Foco nas Infâncias, que atuou na mediação de atividades lúdicas para as crianças.
“As atividades propostas abriram espaço de diálogo sobre memória, território, identidade e valorização da cultura afro-brasileira – questões estruturantes para as crianças e adolescentes moradores da Baixa do Tubo e do Sucuiú. Levar a unidade móvel do Centro de Referência Nelson Mandela para o espaço comunitário do Sucuiú foi uma oportunidade de aproximar políticas públicas dos moradores, levar informação sobre as diversas expressões do racismo presentes na sociedade brasileira, nomear estas violações de direitos que atravessam muitas gerações, fortalecer e inspirar mais pessoas a se engajarem na luta e defesa por direitos”, acredita Christiane Sampaio, coordenadora do projeto Foco nas Infâncias, que atua no território desde 2022.
Para Evanildo Damacena, gestor do Instituto Daniel Comboni, a ação pública na praça foi um momento de grande emoção e aprendizado. “Estar presente na Baixa do Tubo, junto com a comunidade, vivenciando as rodas de conversa, as apresentações e o envolvimento dos moradores, reforçou o quanto o território é vivo, criativo e cheio de vozes que merecem ser ouvidas”.
Agnaldo Lima, psicólogo do projeto AABB-Comunidade, observou que o público, majoritariamente negro, exigia uma abordagem que possibilitasse a tais crianças se reconhecer como pessoa negra e identificar as violências que sofrem cotidianamente.
“Tomando o que eles falaram e a participação deles nas atividades, percebo que suas vivências são atravessadas principalmente pelo racismo recreativo. Mas também identifiquei que conhecem o assunto e podem se tornar porta voz nesse combate. Trazer conscientização sobre o tema e possibilitar que associem à própria identidade é um trabalho muito valioso e necessário”, destacou o psicólogo.
Gilson Sena, integrante da equipe multidisciplinar do Centro de Referência Nelson Mandela, que atua no acompanhamento de pessoas vítimas de racismo e intolerância religiosa, defendeu que iniciativas dessa ordem são oportunidades de trazer para comunidades negras e periféricas um trabalho educativo, que deve começar com as infâncias.
“A educação é a base. Essas crianças representam uma parcela da população negra que são vítimas do racismo. Por isso, nós recorremos à contação de histórias, ao bate-papo, levando o conhecimento de forma lúdica e divertida, usando uma linguagem que todos possam se apropriar e aprender de forma significativa”, explicou Gilson Sena.
Rodinei, que estava entre as crianças que participaram atentamente da oficina de contação de histórias, se disse encantado com o livro compartilhado no evento. “Eu ouvi sobre o livro Calu – A menina cheia de histórias, e aprendi que não se pode fazer bullying com os outros por causa da cor da pele e do cabelo”, compartilhou o garoto.
Ao longo do dia, as crianças tiveram a oportunidade de pintar ilustrações com temas relacionados à cultura africana, montar quebra-cabeças, desenhar e conhecer fragmentos da história da escritora Carolina Maria de Jesus, por meio da exposição fotográfica montada dentro da unidade móvel do Centro de Referência Nelson Mandela.
“A primeira ação pública, realizada na praça, expressou de forma sensível o resultado da articulação entre as instituições que compõem a Rede de Apoio às crianças e os adolescentes da Baixa do Tubo. A praça se tornou um espaço vivo de vínculos, pertencimento e valorização das identidades. O tema do racismo, conduzido pelo Centro de Referência Nelson Mandela, contou com a mediação sensível da Avante e o envolvimento ativo das instituições parceiras, reafirmando a força do trabalho em rede”, avaliou Adaisa Côrtes, assistente social da Fundação Lar Harmonia.
Encerramento
À noite, o encerramento da programação foi um evento à parte. O sarau organizado pelas crianças participantes do projeto Foco nas Infâncias teve apresentação musical das “As Gigantes do Sucuiú” que, sobre pernas de pau, cantaram em homenagem a Dandara dos Palmares; teve também recital de poesia, malabares e coreografia.
Para fechar, a comunidade se reuniu na praça para assistir “É aqui que vivemos”. O documentário, protagonizado pelos primeiros moradores do Sucuiú e da Baixa do Tubo e pelas mulheres de diferentes gerações que ali construíram seu espaço de moradia, de convívio comunitário e onde criam seus filhos, possibilitou uma experiência singular de identificação, reconhecimento e representatividade, sobretudo para as crianças.
“O brilho no rosto das mulheres foi impagável. E a sintonia com o protagonismo das crianças que participaram também foi empolgante”, afirma Igor Sant’Anna, educador do projeto Foco nas Infâncias.
Após a exibição, o documentário foi aclamado em uma grande roda de conversa com as moradoras da comunidade, a equipe do Projeto e as convidadas Justina Santana e Tereza Cristina Soares, da Associação Comunitária do Calabar — parceiras importantes do trabalho de formação política desenvolvido na Baixa do Tubo e no Sucuiú —, além de Patrícia Rosa, da Revista Afirmativa.
O projeto Foco nas Infâncias: defesa de direitos na Baixa do Tubo do Coqueirinho é realizado pela Avante – Educação e Mobilização Social, em parceria com a @Kindernothilfe (KNH).