
A afirmativa de Maynamy Santana da Silva, originário da etnia Xucuru-Kariri, nos convida a muitas reflexões e, por consequência, nos conduz a um caminho de volta ao lugar onde perdemos as nossas raízes.
Seu propósito com esse retorno não é o de reativar memórias sobre a colonização, mas encontrar as chaves para um encontro com o que já fomos para visualizarmos o que ainda poderemos ser. Sua esperança consiste em promovermos um giro pedagógico que não nos permita “continuar replicando o pensamento do colonizador que nos distanciou das nossas verdadeiras origens”.
Para isso, o primeiro indígena a atuar na advocacia de Alagoas defende que esse caminho de retorno comece pela escola. Pois, sendo ela a instituição utilizada para propagar a narrativa do colonizador, que seja ela também a responsável pelo compartilhamento de narrativas outras, possibilitando às crianças conhecerem e se conectarem com a verdadeira história do seu país e território e, assim, formar uma sociedade que se autoreconheça.
Maynamy Santana da Silva é advogado e ativista indígena, pós-graduado em Direito e membro da assessoria jurídica da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME).
Confira, a seguir, a primeira parte do diálogo que a Avante – Educação e Mobilização Social estabeleceu com o ativista.
Avante: A luta indígena é secular e também sempre muito atual e os avanços são sempre muito árduos, você vislumbra algum caminho que possa ampliar e potencializar as conquistas alcançadas até aqui?
Eu acredito que a única forma de mudar o que combatemos é por meio da Educação. Enquanto a gente não refletir sobre as estruturas e políticas pedagógicas do nosso país,
a gente vai continuar sendo reflexo de outras nações. Os povos indígenas lutam pela sua identidade e pelo seu pertencimento. O brasileiro deveria lutar pela sua Educação, pelo seu pertencimento.
A Educação brasileira precisa criar raízes. A gente precisa tirar os nossos alunos das escolas públicas e levá-los para conhecer as ruas, os museus – onde está a verdadeira história das nossas cidades.
Enquanto eu não chegar em uma sala de aula, em uma escola pública, e ver um aluno de séries iniciais, por exemplo, citar um trecho real da história da Bahia ou de Alagoas; enquanto a gente não falar das nossas lideranças indígenas tupinambás e não estiver discutindo a importância do resgate do manto tupinambá, que é um elemento fundamental de reconhecimento histórico, regional, geográfico; enquanto a gente não falar da mãe de Orochó, que morava lá no Rio Vermelho, a gente não vai estar falando da Bahia, não estaremos falando de nós mesmos.
Pedagogicamente falando, a gente deve voltar às séries iniciais para falar sobre a diversidade do país e mudar essa perspectiva educativa voltada para a Europa, para talvez, daqui a 50 ou 100 anos, a gente ter uma sociedade diferente.
A gente está olhando para o mundo, mas eu sinto falta de olharmos para nós. Enquanto a gente não conseguir formar essa nova leva de futuros políticos, acadêmicos, sociólogos, médicos, a sociedade está condenada ao fracasso.
A ignorância é a nossa sentença de culpa. E a única forma de zerar isso é reiniciando um processo de política pedagógica que, de fato, se volte para a sociedade e o seu bem.
Avante: Esse giro pedagógico também tem relação com o reconhecimento dos nossos povos originários. Poderia nos explicar a diferença entre identidade étnica e pertencimento étnico?
Eu gosto de trazer a seguinte reflexão: O fato de morarmos em qualquer país fora do território brasileiro nos torna não brasileiros? O fato de um indígena morar fora da aldeia o torna não indígena? Quando você impõe essa perda de identidade, você causa uma violação extrema de direitos humanos.
Uma coisa é identidade étnica, outra coisa é pertencimento étnico. A identidade étnica passa pela autoaceitação e autodeclaração. O pertencimento étnico não passa pela autodeclaração. Um não indígena pode ter o seu pertencimento étnico reconhecido pelos seus parentes (povos indígenas), em razão do trabalho realizado em defesa desses povos. É diferente da identidade, em que a autodeclaração, pela lei brasileira, por si só basta.
A autodeclaração reconhece a identidade étnica, mas o direito adquirido sobre as bases fundamentais do processo genocida da democratização brasileira não perpassa pela autodeclaração, mas perpassa pelo pertencimento étnico.
Um indígena que não fala mais a sua língua nativa e que veste roupa comum vive sob questionamentos, porque a ele foi imposto a roupa, a língua, a religiosidade cristã, mas depois de séculos de imposição e genocídio, a ele é cobrado um estado originário de 1500.
Avante: Os povos indígenas fazem parte das nossas cidades, estão em nossas escolas, mas dificilmente são reconhecidos como tal. Qual a importância desses conceitos [identidade e pertencimento] para o fortalecimento dos povos indígenas – sejam eles aldeados ou em contexto urbano?
É muito importante entender esses conceitos para não colocarmos os grupos em aldeamento contra os grupos em contexto urbano.
Com a diminuição dos territórios, a população indígena encontrou dificuldades de sobrevivência alimentar, de moradia, por ter sido forçada a viver em um contexto sociocultural diferente. Não conseguindo mais sobreviver da caça, da pesca e das suas práticas de vivência natural, ela é obrigada a sair para a cidade e a aprender novos hábitos e sistemas.
Acredito que todos nós, em algum momento, já ouviu a frase, “minha avó foi pega a dente de cachorro”. Esse coloquialismo social se refere à expulsão dos indígenas para o contexto urbano.
A violência sexual sofrida por essas mulheres causou tanta vergonha à sua essência e contexto espiritual que condenou a sua descendência a não mais viver naquele aldeamento, obrigando-as a se retirarem. Na cidade, o seu descendente perdeu as raízes. Hoje, ao reconhecer a história de violência de seus ancestrais e a sua própria história de violência no contexto urbano, esse descendente entende que precisa se afirmar. Daí surge o autodeclarado.
Então, é triste perceber essa dicotomia do indígena em contexto urbano e rural como mais um discurso democratizante por parte do Estado. Estar em contexto urbano significa a perda de identidade? Ele pode não ter pertencimento étnico, mas ele não tem identidade? Por que a ele não é garantido os direitos?
Me parece que há uma tentativa social de atrelar o indígena ao seu fenótipo. Há um estereótipo pré-estabelecido, mas esqueceram de avisar os nossos colonizadores que era para nos manter assim.
Avante: Você acredita que a representatividade indígena na política abriria novos caminhos para o reconhecimento étnico?
Eu acredito que sim. Se queremos um Brasil melhor, temos que ir para dentro das estruturas que podem, de fato, construir esse caminho. Porque, enquanto estávamos nos protestos de rua, levantando bandeira e cartaz, continuávamos sendo assassinados sem sermos vistos. Com a ascensão da Célia Xacriabá e da Sônia Guajajara ao Parlamento Federal, passamos a ter vozes clamando dentro do parlamento.
A criação do ministério dos povos originários e de superintendências estaduais dos povos originários, como a da Bahia, é apenas um início, mas fundamental e importante para que a gente possa construir um país em que nós sejamos pátrios, porque o Brasil posto nos tornou apátridas. Estamos lutando para conseguir espaço para, dentro desse país, construirmos o nosso Brasil, o nosso pindorama.
Os povos indígenas, assim como outros grupos étnicos no Brasil, foram marginalizados durante muito tempo, por isso, precisam se dividir em subgrupos de representatividade para ganhar o mínimo de força perante a opressão da política brasileira.