
O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) foi elaborado há 27 anos, para atender às determinações da Lei de Diretrizes e Bases (Art.78) sobre o direito dos povos originários à Educação escolar bilíngue e intercultural e, desde então, nunca foi atualizado.
À época de sua produção, o contexto político e social do país era outro. O número de escolas indígenas (1.591) não chegava à metade do que se tem hoje (3.541). Dos 200 povos reconhecidos no Brasil naquele período, saltamos para 305 grupos étnicos indígenas, falantes de 274 diferentes línguas – diversidade que não se sustenta no termo “índio” (já superado) utilizado no documento para nomear os povos originários.
“Criado em 1998, o RCNEI foi de grande importância para nós. Foi um referencial que ajudou bastante a todas as escolas indígenas. Aqui na Bahia, principalmente, ele foi muito útil. Todo professor indígena se adequava ao referencial. Eu, inclusive, trabalhei muito com ele”, declarou Katu Tupinambá, ativista, professor e diretor da Escola Estadual Indígena Tupinambá de Abaeté, situada no sul da Bahia.
De acordo com a apresentação do próprio RCNEI, assinada pela Secretaria de Educação Fundamental, a primeira parte do documento “reúne os fundamentos históricos, antropológicos, políticos e legais da proposta de educação escolar indígena”. Enquanto a segunda, “fornece referências para a prática curricular dos professores índios e não-índios diretamente ligados às ações de implementação e desenvolvimento dos projetos pedagógicos de cada escola indígena”.
O documento constitui importante referência ainda hoje. No entanto, sua necessária atualização decorre das mudanças legais, políticas e contextuais do país e dos povos indígenas, como destaca Katu: “Sabemos que o referencial está desatualizado, muitas coisas mudaram. É preciso que haja uma atualização o mais breve possível, porque o referencial sempre foi um modelo para os professores indígenas seguirem. Naquela época, nós tínhamos os magistérios indígenas, mas, hoje, já temos várias licenciaturas, em várias universidades. Além disso, as leis mudaram muito. Hoje, nós temos a Lei 11.645, que fala dos povos indígenas. Então, essa atualização é necessária”.
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O magistério indígena, apontado por Katu, correspondia a cursos profissionalizantes. Com a chegada e consolidação das licenciaturas interculturais, o perfil dos docentes indígenas também mudou, razão pela qual o processo de atualização do RCNEI deverá considerar, majoritariamente, a participação de pesquisadores indígenas das diversas regiões do país.
A qualidade da Educação Escolar Indígena, portanto, precisa acompanhar e responder às demandas do tempo presente. O próprio conceito de qualidade, sobretudo no que se refere à Educação, “está sempre em construção”, como explica Rita Coelho, coordenadora geral da Educação Infantil (SEB/MEC): “ela é sempre muito relativa, depende do contexto, dos valores, sobretudo, num país continental e desigual como o nosso.” Nesse sentido, atualizar o RCNEI é um imperativo, um passo relevante para possibilitar que o indígena vislumbre, desde a Educação Básica, a oportunidade de ocupar diferentes espaços sociais e, por consequência, romper com o imaginário social que o aprisiona no passado.
“A Educação Escolar Indígena [EEI] é a Educação entre quatro paredes, onde nós levamos essa formação do indígena cidadão, do que é ser cidadão. Precisamos aprender a malícia do homem branco para nos defender. E aprender a malícia do homem branco é estudar, é ter os conhecimentos para que a gente possa lutar de igual para igual com eles”, argumentou Katu Tupinambá.
A atualização do Referencial é um caminho em direção à qualidade da EEI, à formação contínua dos professores indígenas e não-indígenas, ao incentivo à autoria e pesquisa indígena, assegurando que seja ele o interlocutor entre a sua comunidade, a sociedade e a escola.
“Esse é o medo deles também: de que os povos originários aprendam e tenham conhecimento, porque eles querem, o tempo todo, que nós fiquemos à mercê deles. É esse o desejo de todo homem branco, desses políticos aí”, afirmou Katu, que exemplificou sua assertiva com o imbróglio do marco temporal. “Eles querem a todo custo botar esse marco temporal para frente. Sabemos que é inconstitucional, mas eles insistem. É por isso que nós temos que entrar na política, ocupar os espaços de poder, para lutar também nessas causas e derrubar essas leis que eles pretendem usar contra nós, porque isso garante a nós nos defender”.
O marco temporal defende uma alteração na política de demarcação de terras indígenas no Brasil, de forma que, só teria direito sobre uma terra os povos indígenas que já a ocupassem em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal – deslegitimando a história e resistência dos povos originários.
O currículo é um importante instrumento de poder, por isso mesmo, alvo de grandes disputas. A Educação Escolar Indígena é apenas uma das várias questões referentes aos povos originários que estão sob embate permanente, desde a chegada dos portugueses.
Os últimos ditames governamentais no Pará – que colocaram em xeque a qualidade da EEI no Estado – comprovam a permanência dessas disputas e denunciam a necessidade de um engajamento nacional em defesa dos direitos indígenas, não somente como medida reparatória, mas de valorização desses povos que, mesmo donos do território brasileiro, têm lutado assimetricamente, há mais de 500 anos, para serem reconhecidos como tal.