No bairro de Piatã, região de classe média da cidade de Salvador, de acordo com o censo do IBGE de 2010, 47% de seus moradores são brancos. Lá, está localizada a praça Segredos de Itapuã. Perto da orla, o espaço público conta com parques e quadras, além de ser ocupado por famílias em momentos de lazer. Quem passa pela praça pode assistir aulas de capoeira e crianças brincando até tarde da noite. A alguns quilômetros dali chegamos à comunidade da Baixa do Tubo, lá, as crianças reclamam por terem apenas um campo de futebol de terra batida, que precisam dividir com os adultos.
De acordo com o Atlas das Periferias no Brasil, 68% da população que vive em comunidades periféricas, como a Baixa do Tubo, é autodeclarada negra. Essas regiões são marcadas por precariedade de infraestrutura e pouca presença do poder público, principalmente no aspecto da segurança. Com o aumento da criminalidade, a violência se torna um empecilho cada vez maior na rotina do brincar das crianças.
Conversamos com fontes locais que afirmam que o tráfico de drogas e o crescente controle das facções limitam a transição das pessoas pela comunidade e impõem toque de recolher à noite. Com um clima de incerteza e prezando pela segurança, mães e pais tendem a limitar a presença das crianças no espaço público quando não estão no trabalho e à noite se veem obrigados a manter seus filhos em casa.
O confinamento intensifica o uso de jogos eletrônicos entre as crianças e as isolam dos ambientes e do convívio. “As brincadeiras hoje em dia são videogame, jogos eletrônicos e eu não gosto”, relata Jaciane dos Santos, moradora da Fazenda Grande do Retiro, ao refletir sobre as mudanças sofridas entre o brincar de sua infância a de seu filho Gabriel, de sete anos.
A Fazenda Grande é outra comunidade periférica em Salvador (BA) que se encaixa no perfil traçado pelo Atlas das Periferias no Brasil. Josiane conta que na infância brincava muito na rua e guarda boas lembranças do período. Diferente dela, Gabriel só brinca na rua quando sua mãe permite ou quando está na banca escolar, no contraturno da escola.
“Quando eu era criança tinha a maior liberdade para andar de bicicleta nas ruas sem preocupação” Admite Jaiasry Nunes, também moradora da Fazenda Grande, que busca se envolver com a brincadeira do filho Hector Jorge, 8 anos, quando estão em casa. O garoto conta que sua brincadeira favorita é pega-pega, mas a falta de manutenção no asfalto do bairro, principalmente na região de sua banca e da escola, se torna um risco de se machucar. “Eu gosto muito de correr, mas minha mãe fica preocupada”. A casa, acaba sendo o espaço mais seguro para Hector ser criança.
Direito ao Brincar
Para Ana Marcilio, consultora associada da Avante – Educação e Mobilização Social, especialista em participação infantil e no brincar, “Se o brincar é um direito, a violação dele já seria uma violência”. Ana abordou a temática durante World Forum on Early Childhood Care and Education (WoFo), no Canadá, em abril. Sua fala expressa a experiência na atuação em comunidades periféricas de Salvador que têm no brincar a principal estratégia para o enfrentamento às violências.
O brincar é um direito previsto por marcos legais brasileiros, que compreendem a criança como sujeito de direitos. O artigo 16 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que brincar é um direito inalienável das crianças. O ECA reforça o que já é garantido no Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outras coisas, o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Todos os direitos que podem ser fortalecidos pela garantia do direito da criança de brincar.
O Brasil é signatário da Declaração Universal dos Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU) e tem nesse documento mais um marco legal que garante à criança o direito à ampla oportunidade para brincar e se divertir. Na contramão dos marcos legais, o direito ao brincar de todas as crianças é violado “em níveis distintos e em diferentes camadas sociais”, destaca Ana Marcilio.
Diante da carência de políticas públicas, em especial de segurança, educação e urbanização, o direito ao brincar das crianças pretas, moradores das comunidades periféricas está entre os mais violados. Ana Marcilio, juntamente com Maria Thereza Marcilio, presidente da Avante, assinam juntas o artigo intitulado Direito ao brincar que integra a publicação Cidade, gênero e infância, organizada pelos arquitetos e urbanistas Rodrigo Mindlin Loeb e Ana Gabriela Godinho Limade. No texto, elas partem da experiência em projetos realizados em comunidades periféricas para discutir como o desenvolvimento desigual impacta o território influenciando a possibilidade do brincar, promovem violação desse direito e os possíveis impactos na vida adulta.
A partir das brincadeiras as crianças aprendem a respeitar as diferenças, a lidar com regras e conflitos, preparando para a vida. Uma atividade de lazer, cultura e educação onde a criatividade é prioridade. Um momento para se levar para a vida adulta.
Há preconceito no brincar?
Ou o direito ao brincar é impactado por preconceito? “Eu diria sim, para as duas possibilidades. Primeiro, o brincar tem um quê de criação, descoberta e transgressão, mas tem um outro tanto de reprodução social. Então, sim: a brincadeira é perpassada pelos preconceitos vigentes na sociedade”, responde Ana Marcilio.
“Se o direito é impactado pelos preconceitos e opressões de uma sociedade? Super! A velha interseccionalidade de gênero, cor, classe social, origem étnica e orientação religiosa, por exemplo, impactam o brincar. Repare, por exemplo, meninas muitas vezes alijadas das brincadeiras para se ocuparem de tarefas domésticas e do cuidado de irmãos e irmãs mais novas. Essa situação fica mais grave quando a criança é preta, habita em áreas com pouca infraestrutura social e saneamento básico em famílias onde a renda é baixa “, acrescenta.
Ainda de acordo com a consultora associada da Avante, os adultos que tiveram tempo para brincar quando criança, têm um olhar diferente para a prática nas infâncias de hoje. “A ideia de uma civilização exploratória, onde há uma jornada de trabalho de 44 horas semanais, sem considerar o tempo de deslocamento, que em grandes centro urbanos pode levar duas horas ou mais, somado à violência – seja das forças de segurança pública, seja de assaltos e outros crimes matam a capacidade do brincar -, esse adulto, que não brincou, que está exausto e muitas vezes maltratado, vai ter uma enorme dificuldade de, mais que garantir, assegurar o direito ao brincar das crianças que o cercam”, disse.