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Quando o lar deixa de ser um lugar seguro, a escola protege

É dever da família, da comunidade, do Estado e da sociedade assegurar proteção integral à criança e ao adolescente. Proteção implica segurança, abrigo, apoio – características muito próximas do que se define como um lar. Porém, para muitas crianças, a própria casa se tornou um lugar adoecedor, restando à escola a única possibilidade de refúgio.

Na agenda de enfrentamento e conscientização sobre o abuso e exploração sexual de crianças, um tema crucial é a Educação. Não apenas por se configurar importante estratégia de prevenção, mas, principalmente, porque a escola, lugar assegurado pela Constituição para a garantia do direito à educação, tem se tornado alvo de acirradas disputas políticas.

O homeschooling – educação domiciliar ou doméstica – mesmo sendo considerado ilegal no Brasil, tem atraído adeptos por todo o país, incluindo representantes parlamentares.

Sob alegação de que o lar pode ser um lugar mais seguro e propício à participação dos pais na educação dos filhos, sobretudo na transmissão de princípios e valores específicos que escapam ao caráter laico da escola tradicional, muitas famílias defensoras do homeschooling tem se apoiado ainda em outras variantes igualmente problemáticas, como a escola sem partido e a ideologia de gênero.

As pesquisas, entretanto, contradizem o argumento dos adeptos da educação domiciliar. Para muitas crianças, especialmente meninas negras – que são as maiores vítimas de exploração sexual, segundo a Organização Mundial da Saúde – o lar, na verdade, pode ser um lugar muito perigoso.

Considerando as notificações do Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, divulgado em fevereiro de 2024, o perigo pode estar mais perto do que se imagina, visto que 82,5% dos abusadores são homens conhecidos da vítima, incluindo pais, padrastos, primos e avós.

Ao compararmos os índices de violência ocorridos dentro de casa com as da escola, percebemos que o ambiente escolar tem sido mais seguro que o lar, pois apenas 1% dos casos registrados ocorreu em estabelecimento de ensino, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022).

Com base nesses dados, emergem duas questões fundamentais e carecedoras de atenção: primeiro, o papel protetivo da escola, uma vez que ela quase sempre é o lugar do desabafo e da percepção de alteração de comportamento da criança e, segundo, por ser um ambiente formativo propício à educação sexual, importante estratégia preventiva.

A concretude da escola como lugar seguro se verifica nos números citados e suscita o debate sobre a problemática que configura o homeschooling. A educação domiciliar, requerida por parlamentares e parte significativa da sociedade conservadora, classista e religiosa, é um contrassenso e nega a realidade da maioria das crianças.

A restrição da criança ao espaço domiciliar acentua as condições de vulnerabilidade. Isso fica claro com o aumento de notificações registradas em 2021, em comparação com os anos anteriores, quando as crianças foram impedidas de irem à escola, em função da pandemia de Covid-19.

Embora as pesquisas e números revelem que a maior concentração de casos ocorre em famílias economica e culturalmente mais vulnerabilizadas, é preciso refletir sobre a omissão de notificações ocorridas em lares construídos sob fundamentalismos religiosos, onde a submissão é a regra, e nas famílias brancas e economicamente privilegiadas, cujos casos, quando chegam à mídia, são de agressões letais e trágicas. A aprovação do homeschooling, portanto, abre um precedente legal que desobriga a matrícula na escola e pode, portanto, ampliar a vulnerabilidade das crianças reclusas em seus lares.

Vulnerabilidade essa que se potencializa por várias razões: primeiro, pela percepção dos familiares sobre o comportamento da criança estar condicionada à presença do aliciador, que, por acessar o lar e a família, sempre tentará minimizar reações adversas da vítima; segundo, porque denunciar um adulto íntimo da família torna o processo ainda mais difícil e desencorajador para a criança; terceiro, para além do medo e constrangimento, a criança pode temer o  descrédito dos adultos perante o seu relato.

A escola, por outro lado, é o lugar da interação, do contato. Em muitos casos, os colegas e professores são os primeiros a perceberem aspectos como retração, insegurança ou irritabilidade, e, a partir daí, começa-se a busca por diálogo e escuta cuidadosa. Isso significa que a escola pode representar um lugar seguro para a criança, que, longe do ambiente de abuso e da presença do abusador, pode se sentir encorajada a desabafar.

A função educativa e informativa que também caracteriza o ambiente escolar é mais um ponto a favor da escola e contrário ao homeschooling, pois para muitas famílias a educação sexual é um tabu. Quando mensuramos que grande parte das famílias apoiadoras do homeschooling se fundamenta em algum dogma religioso, isso nos permite inferir que dificilmente a educação sexual será tema de diálogo. Logo, o homeschooling pode ser uma barreira significativa para a prevenção de violência sexual.

É necessário potencializar as instituições escolares para a proteção e prevenção das crianças contra qualquer tipo de violência, e investir para que a escola, sobretudo a pública, responsável por receber as maiorias socialmente invisibilizadas, seja um abrigo seguro, um ambiente de empoderamento e autoproteção.

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