Escola localizada no Centro Histórico de Salvador está entre as unidades premiadas em edital que conecta educação e território. “Nós não conhecíamos o prêmio Territórios Tomie Ohtake, recebi a divulgação do edital pelas redes de contatos e lendo a sua descrição, visualizei, de imediato, a nossa escola – ‘Nossa, isso aqui é a cara da João Lino’, por sua articulação com o território do Pelourinho e com as instituições de seu entorno”, compartilhou Rita de Cássia Natividade, gestora da escola.
O Prêmio idealizado pelo Instituto Tomie Ohtake tem seus pressupostos baseados nos Territórios Educativos e na Educação Integral, orientados pelo princípio de Cidade Educadora e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
O objetivo da oitava edição do Prêmio consistiu em reconhecer dez ações ou projetos pedagógicos, desenvolvidos em escolas públicas brasileiras, voltadas a potencializar aprendizagens a partir das possibilidades de construção do Território Educativo, fortalecendo parcerias e iniciativas que englobam a igualdade de direitos, as tecnologias digitais e ancestrais, o brincar, e demais temáticas relacionadas.
A Escola Municipal João Lino, única unidade de ensino baiana entre as dez premiadas, está situada no Pelourinho – área declarada Patrimônio Mundial pela Unesco, em 1985, e que concentra ancestralidade, história e memória, abrigada em diversos equipamentos públicos – museus, teatros, igrejas, cinema, associações carnavalescas, blocos afros e grupos de capoeira.
De acordo com Rita de Cássia, a escola de Educação Infantil que funciona há meio século no Centro Histórico, embora sempre tenha se comunicado com o território, somente na última década, sistematizou e ampliou um projeto intersetorial, cultural e educativo tornando-o uma experiência pedagógica para as crianças e a equipe da instituição. “Visitar os espaços e instituições culturais não estava nos satisfazendo, precisávamos da transposição dessas visitações e aprendizados para a nossa prática pedagógica, a partir dos objetivos principais da Educação Infantil”, destacou.
A necessidade de conectar as dimensões do educar, do cuidar e do brincar – que fundamentam a Educação Infantil – à riqueza cultural do entorno da escola, culminou com a concepção do projeto “Eu, Criança do Pelô”, cujo propósito era linkar as vivências oferecidas pelo Pelourinho aos campos de experiências previstos para a Educação Infantil, a fim de garantir o desenvolvimento das crianças, respeitando a cultura da infância em diálogo com a cultura local.
Escola e Território
Os estudantes da Escola João Lino são crianças moradoras do próprio Centro Histórico ou bairros próximos, como a Barroquinha, o Taboão e o Comércio. Entretanto, apesar de habitarem esse território, as crianças, de acordo com Rita de Cássia, não se sentiam protagonistas dos seus espaços. Esse não-pertencimento guarda relação com a intensa atividade turística da região, que tem suas ruas e equipamentos culturais ocupados por visitantes estrangeiros, durante todo o ano, e cuja atenção do poder público sempre enfatizou o bem-estar do visitante.
“Ao entender que as crianças não se sentiam donas desse espaço, dessa história, a equipe escolar percebeu que precisava de um processo de articulação com o território que garantisse a identidade e esse sentimento de pertença. Os professores protagonizaram esse processo de sistematização ao entenderem a necessidade de trazer a criança para o centro do Centro Histórico”, destacou Rita. Segundo ela, a partir daí, a equipe escolar se viu engajada em aprimorar o processo de planejamento a partir do estudo, da pesquisa e do diálogo com as academias, principalmente com a Universidade Federal da Bahia. A escola se articulou com historiadores e pesquisadores da temática étnico-racial e começou a traçar um planejamento anual.
Inicialmente, o projeto foi chamado de “Eu, menino do Pelô”, no entanto, acompanhando as discussões sociais, a comunidade escolar compreendeu que, além da questão racial, gênero também precisava ser uma categoria respeitada, por isso, o nome foi reformulado para “Eu, criança do Pelô”.
O resultado de todo esse processo foi uma aproximação maior das famílias e do entorno com a unidade escolar. “As instituições foram ampliando o olhar para a escola. Nós começamos a ganhar em qualidade. As nossas mostras pedagógicas surgiram com a ideia de publicizar isso que vínhamos fazendo; certa vez, a equipe do Museu Nacional de Enfermagem Ana Nery (MuNEAM), vizinho da nossa escola, foi nos assistir e ficou encantada com a produção das crianças e em como elas traduziam e expressavam, a partir da arte, o seu entendimento sobre as questões étnico-raciais – com ênfase na história e cultura afro-brasileira, afinal de contas, nós estamos no Pelourinho e a Lei 10.639 termina sendo a nossa realidade”, contou Rita de Cássia.
Dessa aproximação com o MuNEAM, as mostras que duravam apenas um dia, por conta do espaço limitado da escola, que funciona no térreo do Instituto Kardecista da Bahia, passaram a manter-se em exposição entre uma e duas semanas. Sensibilizado com o trabalho das crianças, o Museu Ana Nery cedeu espaço para as mostras pedagógicas e disponibilizou uma equipe de Museólogos para contribuir com a exposição dos trabalhos, de forma que todos os visitantes, comunidade e famílias ganharam mais tempo para prestigiar o trabalho das crianças.
Visibilidade
Essas conexões foram dando visibilidade ao fazer das crianças e suas expressões. À medida que os trabalhos foram sendo expostos fora da escola, a cultura das crianças conquistou maior significado e valor junto às famílias.
Ao serem publicizadas pelos diversos canais de comunicação da cidade, da Secretaria de Educação, da Prefeitura, as ações escolares ultrapassaram o Pelourinho. Além disso, os trabalhos começaram a ganhar os espaços da Universidade Federal da Bahia, por meio dos grupos de pesquisa que estudam as infâncias de Salvador e, a partir dessa visibilidade, as famílias começaram a entender a potência da sua realidade, da sua cultura, da sua história e da sua raça. “Ao estreitarmos os laços com o território, as famílias começaram a compartilhar, nas reuniões de pais, depoimentos de como é positivo se enxergar dentro da prática pedagógica de uma escola formal”, ressaltou Rita de Cássia.
Intersetorialidade
Além do diálogo com instituições culturais do Pelourinho, o Projeto abraça uma perspectiva importante de intersetorialidade, que se estende ao acesso a diferentes bens socioculturais. Na tentativa de romper com o racismo estrutural que afeta a comunidade do Centro Histórico, a escola sistematiza suas práticas pedagógicas com articulações que buscam englobar todos os direitos da criança.
“Nesse processo de articulação, temos uma relação próxima com o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), com o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), com o Conselho Tutelar, com o posto de saúde Terreiro de Jesus, de forma que o agendamento das nossas crianças acontece com muita fluidez. Em casos de emergência, a equipe de saúde está lá para nos atender, nos orientar e fazer os encaminhamentos necessários. É importante dizer que nossas crianças não acessam apenas ações educativas, mas uma rede de cobertura de todas as suas necessidades, que perpassam pelo cuidar, pelo educar e pelo brincar”, explicou Rita.
Empoderamento
Da visibilidade, veio o empoderamento. A comunidade escolar foi despertada para exigir os seus direitos, o que resultou na conquista da aquisição de um novo espaço para a escola.
A gestora da João Lino compartilhou que a prefeitura alugou um prédio novo com três pavimentos, brinquedoteca, sala multiuso e toda a estrutura para o funcionamento pedagógico e administrativo da escola. “Existe um ganho que nós precisamos enfatizar: a nova sede da escola será de atendimento integral. As crianças passarão o dia na escola, e vocês devem imaginar o quanto isso impacta em toda a comunidade escolar. Um direito garantido para as famílias, que terão um espaço seguro para deixar as crianças enquanto trabalham”, enfatizou.
Para Rita de Cássia, a aquisição e a garantia de direitos sociais, principalmente em se tratando de uma localidade com racismo estrutural e desigualdade social severa, é um dos principais resultados do trabalho de empoderamento que vem sendo realizado com a comunidade escolar.
“Qualquer pessoa que circule no Pelourinho se encanta com a arquitetura, com a história cravada no calçamento, nos prédios tombados, na cultura, mas tem também a infeliz oportunidade de visualizar uma pobreza dantesca – pedintes, população em situação de rua, crianças expostas, vulneráveis, um risco de abuso muito grande – e a nossa escola vem fazendo um trabalho de empoderamento e conscientização”, ressaltou Rita de Cássia.
A premiação
“Foi uma alegria receber a notícia da premiação”, compartilhou a gestora da João Lino. Quando a escola resolveu romper com seus muros e mergulhar no território, segundo ela, foi também uma tentativa de tirar as crianças de um espaço físico inadequado, mas cheio de amor e riqueza pedagógica. Elas precisavam de oportunidade para apreciar, experimentar e fazer, para se desenvolverem de forma adequada e expressar as suas naturezas infantis. A escola rompeu com os muros nesse objetivo, mas também descobriu o território e o seu potencial, a força das instituições e das personalidades locais. “As nossas crianças estudam as pessoas do território, que são os seus ancestrais – avós e bisavós”, acrescentou.
“Se inscrever no projeto Territórios Tomie Ohtake e ser premiado traz para a comunidade escolar uma sensação de validação do seu fazer, tudo isso que estamos desenvolvendo há anos e que estamos assistindo os resultados é validado por um Instituto que entende a necessidade de uma escola dialogar com seu território, de uma comunidade escolar e um território pensarem a Educação. A premiação traz uma sensação de que estamos no caminho certo, de que a Educação que nós sonhamos para as nossas crianças não está restrita a um ambiente escolar, que ela precisa ser abraçada por toda a sociedade e isso começa no território de sua comunidade escolar”, compartilhou Rita, com orgulho.
O projeto “Eu, criança do Pelô” não é um projeto pontual, anual. Segundo Rita de Cássia, é uma escolha da proposta pedagógica de uma equipe escolar validada por toda a comunidade, que a cada ano ganha novas edições, novas fontes de pesquisa e aprofundamento para manter o encantamento da equipe, o interesse das crianças. Ele não se encerra, antes, busca cotidianamente ampliação e melhoramento.
“Eu penso que o diferencial desse projeto é que as crianças se desenvolvem plenamente a partir da execução das atividades pelos campos de experiência, e fazem isso entendendo que são parte do processo, reconhecendo a importância da sua história e da sua cultura. Fazem isso a partir de um movimento de empoderamento de sua autoestima, não somente as crianças, mas toda a comunidade escolar: professores, equipe de apoio, auxiliares de desenvolvimento infantil. As famílias têm a oportunidade de repensar a sociedade e enxergar o potencial de cada indivíduo daquele espaço”, concluiu Rita.