Sem apostilas! A favor da fantasia e imaginação das crianças! A favor das interações, brincadeiras e das experiências étnico raciais das crianças, na construção de seus saberes¹
Nós, do Fórum Mineiro de Educação Infantil (FMEI), um coletivo de professoras, pesquisadoras e ativistas que desde 1998, analisamos demandas da sociedade e dos sistemas de ensino para a educação infantil e as transformamos em pautas de pesquisas, mobilização e formação, vimos manifestar nosso posicionamento a respeito da utilização de apostilas/cadernos de atividades para crianças muito pequenas.
Porque resolvemos nos dirigir diretamente a vocês, professoras/es que educam crianças muito pequenas, para tratarmos deste assunto: apostilas/cadernos de atividades na Educação Infantil?
Primeiro, para afirmar que as crianças, como cidadãs, em processo de formação têm direito à educação infantil de qualidade socialmente referenciada, sendo meninos ou meninas, pobres ou ricos, negros ou brancos, moradores das periferias das cidades, das favelas, das regiões centrais ou do campo. E a este direito social corresponde o dever do Estado de prover e regulamentar a oferta de Educação Infantil. Neste sentido, vocês, professoras da rede pública e privada ocupam um lugar privilegiado na promoção das culturas infantis; quando as crianças encontram a sensação de pertencimento às culturas produzidas pela humanidade.
Segundo, porque trabalhamos para que a educação infantil brasileira reconheça as crianças de 0 a 6 anos, como o centro do processo pedagógico. Partimos do conhecimento de que os bebês e as crianças pequenas carregam consigo um lúdico desejo de aprender. Quando são estimuladas com respeito e afeto, independentemente da etnia e idade (negras, brancas, índias e asiáticas) respondem com Interesse e curiosidade aos desafios que são apresentados. Este desejo pode crescer nos encontros entre criança/criança e adulto/criança.
Ao brincar as crianças aprendem de várias formas, vocês sabem bem. Nas histórias que escutam, nas histórias que reinventam suas experiências, com imaginação e fantasia, ao recriarem o mundo com desenhos, teatro, músicas. Vão trilhando assim, os caminhos dos muitos saberes. Estes saberes nascem da interação com os outros, iguais e diferentes. As crianças do campo e das cidades vivem as distâncias percorridas entre a escola e suas casas, dentre tantas experiências de ser criança: as lutas populares pelo território, os festejos da colheita de grãos, as brincadeiras com carrinhos, casinhas, as vivências dos povos indígenas e quilombolas, a feitura do pão e outras delícias.
As professoras de Educação Infantil solidamente formadas desenvolvem junto com as crianças estes saberes, que partem da condição humana e social que vivenciam, compartilhando o protagonismo com as crianças em suas interações, intervindo com dinâmicas educativas relevantes e significativas.
Consideramos fundamental responder às demandas das crianças, apoiando-as na construção e reconstrução de concepções sobre as diferenças de gênero, de raça, de classe social, entre outras. Afirmar direitos na educação infantil envolve aprender a pensar, falar, participar, organizar seu espaço, escutar o outro e se divertir muito na inteireza de ser reconhecida como ser criança, individualmente e coletivamente e pelo pertencimento à uma cultura que se refaz sempre.
Mostramos até aqui nossa posição de que na Educação Infantil precisamos oferecer recursos que fortaleçam as crianças, como produtoras de cultura, no seu desejo de apreender o mundo, a partir das suas próprias experiências, das interações e brincadeiras espontâneas e dirigidas.
A partir deste momento, vamos tratar dos cadernos de atividades/apostilas, como um recurso pedagógico. Eles estão por toda parte, nas bancas de revistas até nas escolas. As editoras tentam ganhar a atenção das crianças com capas coloridas bastante atrativas e com propostas de atividades simples, tal como colorir um desenho. As habilidades exigidas nessas publicações são geralmente a percepção de imagens e a repetição mecânica de exercícios para treinar as crianças ao ensino programado. Isto reflete uma concepção de criança padrão e de educação infantil, que desconsidera a importância delas criarem seu próprio desenho com sentido próprio, a reprodução criativa de histórias, que tem a ver com o que vivenciam.
Analisamos alguns exercícios do caderno de atividades dirigido para crianças de 3 anos – “Kit A – “Natureza e Sociedade” e nos posicionamos sobretudo sobre o que é apresentado como imagem e o que é exigido das crianças.
Vamos “colar” um exercício deste livro para demonstrar nossa posição:
As palavras tem história e se associam com outras palavras. Da mesma forma que as crianças têm preferências ao escolher “do que brincar”, “com quem brincar” e “onde brincar”.
A imagem desta atividade e o que é pedido para as crianças de 3 anos associa a palavra “lar” com um grupo de pessoas, que sugere uma estrutura familiar formada por dois adultos e uma criança. A palavra “lar” possui sentidos diversos, entre eles o de indicar a atividade doméstica das mulheres – “do lar”. O exercício fortalece de forma subliminar uma compreensão de lar, a partir de imagens que se repetem, com variações na cor da toalha e na cor das pessoas. Portanto, a imagem ignora os mais variados arranjos familiares presentes em nossa sociedade, dos quais as crianças fazem parte, são socializadas e educadas. A associação entre estas imagens “do lar” e as pessoas felizes, solicita à criança circular uma das imagens, indicando que há uma única resposta correta. Qual o “lar onde as pessoas estão felizes”?
As opções de resposta (imagens) obrigam não só as crianças, como também as professoras a fazerem comparações do tipo – ou isto ou aquilo. Isto é, as possibilidades de resposta as colocam frente a um pensamento de posições binárias.
Outro elemento que a imagem nos traz, refere-se à compreensão de felicidade: o “lar feliz” é o grupo das pessoas brancas. O exercício induz ao pensamento dicotômico porém a imagem do grupo de pessoas negras, mesmo acompanhando o modelo do “lar padrão” não informa – infelicidade – nesta imagem. Os semblantes das pessoas negras são de espanto, de surpresa.
Nas escolas, tanto privadas quanto públicas há crianças negras e brancas, que vivem momentos de felicidade e de tristeza. Se as crianças negras ainda são discriminadas pela cor da sua pele na sociedade e na escola, como se sentirão no momento deste exercício?
Entendemos que este exercício treina o pensamento para uma única resposta correta e não dá valor às experiências das crianças. O exercício trabalha com o adestramento da mente das crianças, reproduz estereótipos sociais que as crianças brancas e negras aprendem na sociedade.
Se a professora utiliza uma atividade como a da imagem, que oferece uma “situação pronta de felicidade” para as crianças, silencia as muitas experiências que as crianças vivenciam. Desta forma, as crianças são forçadas a valorizar o que vem de fora (do livro), principalmente pelo fato de que devem responder “de maneira correta” ao que é pedido pelo livro de atividades.
Outra questão deste livro para crianças de 3 anos sobre o tema Natureza e Sociedade, que gostaríamos de destacar é:
A linguagem visual neste exercício usa de forma repetitiva as diferenças de côr da pele, indicando algumas características das mulheres. Enquanto as mulheres brancas estão vestidas com saias e carregam livros nas mãos, a mulher negra está de calça comprida e carrega uma vassoura. O trabalho educativo é associado à presença das mulheres brancas, que pelas suas vestimentas representam o universo feminino e o trabalho de limpeza da escola associado à mulher negra, com uma vestimenta diferente representa uma mulher de uniforme. As imagens reforçam as representações sociais, os estereótipos negativos presentes no imaginário social sobre as mulheres negras e ressaltam as qualidades positivas das mulheres brancas. O trabalho mais desvalorizado na nossa sociedade é atribuído à profissional negra.
A autora subestima a capacidade das crianças e das professoras, ligando com pontinhos as respostas “corretas” e aparentemente exige apenas uma habilidade de controle motor. Mas ao observarmos as imagens vimos que propõe às crianças de 3 anos o estabelecimento de relações entre as mulheres de um lado e os seus locais de trabalho. Portanto, trata de relções de gênero e raça, de uma forma estereotipada, apresentando uma simplificação que é por demais grotesca e limitante de uma realidade social que está em processo de transformação. As crianças pequenas das escolas públicas provavelmente conhecem professoras, diretoras, artistas, empresárias, ministras que se reconhecem como mulheres negras. No entanto, a resposta correta estabelece uma rígida relação entre a cor da pele das mulheres e o que fazem na escola, não permitindo a expressão e ampliação do conhecimento das crianças. Nem a emergência de um pensamento que discorda de uma ordem social e racial.
Este padrão de pensamento expresso nos dois exercícios do Kit para crianças de 3 anos representam o pensamento colonial em pleno século XXI. Revela, sobretudo o racismo institucional, pelas escolhas racistas de imagens e indução de respostas elaboradas pela autora da referida publicação, aprovadas pela Editora Formando Cidadãos.
Constatamos pela análise das imagens e questões apresentadas uma desconsideração do direito à educação infantil socialmente referenciado e das orientações expressas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (Brasil, 2004) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (Brasil, 2009). Esta desconsideração não permite o exercício da cidadania na escola, isto é a participação social e política das crianças neste contexto.
Na esteira destas reflexões, vislumbramos uma concepção referenciada nos interesses da transmissão de valores apropriados à manutenção do poder e de um saber que devem dominar o pensamento das crianças pequenas. Além disso, os cadernos/apostilas são vendidos como solução que facilitam o trabalho das professoras e alguns dirigentes das escolas privadas e públicas acreditam nesta solução enganosa. Por outro lado, os que adquirem estes cadernos alimentam o não compromisso com investimentos permanentes e necessários na formação de professoras da Educação Infantil. Resta-nos perguntar: Quais os impactos das atividades, como as duas que selecionamos para análise, propostas pelo Kit 3 anos, “Natureza e Sociedade”, na vida das crianças muito pequenas?
A curto prazo, as políticas pedagógicas que utilizam apostilas na Educação Infantil causam danos às crianças que frequentam esta etapa da Educação Básica, desconsiderando suas experiências e saberes, não respeitando tradições populares historicamente produzidas, que são constantemente revistas.
A longo prazo, as consequências políticas podem ser mais nefastas, pois produzem subjetividades superficiais, que se acostumam com o que está pronto, enfraquecendo os desejos de uma geração, que precisa confiar em si e no coletivo para superar os problemas que vive. Uma pessoa que hoje brinca e tem acesso à escola de Educação Infantil ao se educar por meio de cadernos de atividades com respostas únicas e pré-concebidas, futuramente pode se tornar uma pessoa mais susceptível à discriminação racial, à dominação no trabalho e na vida política.
Por tudo isto que apresentamos, repudiamos a utilização de livros de exercícios/apostilas nas escolas públicas e privadas, sobretudo com crianças muito pequenas, especialmente os que são produzidos sob a ótica do adestramento, da repetição do pensamento único, reforçando o racismo estrutural presente na sociedade brasileira.
Assim, sugerimos aos fóruns de Educação Infantil pautarem o debate sobre o tema – apostilas na Educação Infantil – problematizando a utilização destes materiais, como recurso pedagógico.
Ressaltamos a importância da participação ampla de especialistas e professoras na escolha de livros de literatura infantil e outros materiais necessários ao desenvolvimento de práticas pedagógicas centradas nas crianças da Educação Infantil. Esta participação deve ser regulada por procedimentos democráticos e transparentes, necessitando de permanentes revisões e de amplo conhecimento da sociedade. De forma concomitante, esperamos que a participação democrática dos pais nas escolas públicas e privadas seja incentivada em todas as etapas da Educação Básica.
Fórum Mineiro de Educação Infantil
¹ Para nomear este Manifesto nos inspiramos no Manifesto do Fórum Regional de Educação Infantil do Mucuri e Jequitinhonha/MG, divulgado em maio de 2017. Ver blog FMEI – http://fmeiestadualmg.blogspot.com.br/
Fonte: Extraímos os exercícios analisados da matéria publicada sobre a denúncia da mãe, Aline Lopes. “Ela conta que, por ser uma mulher branca, nunca se sentiu excluída ou socialmente privada do que quer que fosse em função da sua pele clara. Mas, por ter dois filhos negros (uma menina de 5 anos e um menino de 3 anos), Aline diz que começou a sentir o peso do racismo dentro da sua casa, depois que as crianças nasceram.”
https://extra.globo.com/noticias/brasil/mae-denuncia-racismo-em-livro-didatico- de-escola-privada-em-recife-editora-rebate-21436592.html
http://www.folhape.com.br/noticias/noticias/educacao/2017/06/02/NWS,29840,70,614,NOTICIAS,2190-MAE-DENUNCIA-PRECONCEITO-LIVRO-DIDATICO-INFANTIL- USADO-RECIFE.aspx
Legislação citada no Manifesto:
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP nº1, de 17 de junho de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- brasileira e Africana. Diário Oficial da União, Brasília, 22 jun. 2004.
______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB nº 20, de 11 de novembro de 2009. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Diário Oficial da União, Brasília, 9 dez. 2009.
______. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº 5, de 17 de dezembro de 2009. Fixa as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil. Diário Oficial da União, Brasília, 18 dez. 2009c.