Avante

logo_Prancheta-43

Há mais filosofia entre céu e terra do que sonha nossa vã colonialidade

Futuro Ancestral é o título da mais recente obra lançada pelo filósofo, escritor e, agora, imortal da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak. O conflito entre o ambiente construído pelo homem e o que precisou destruir para materializar essa “*utopia” é abordado por Krenak ao longo de cinco textos, a partir da relação entre tradições indígenas, eurocentrismo e educação, a fim de comprovar o que prenuncia no título: o futuro é ancestral.

*UTOPIA – sistema ou plano que parece não ser possível na prática.

*EUROCENTRISMO – visão centralizadora de que os países da Europa são superiores aos demais povos e culturas do planeta.

O autor embasa seu pensamento na experiência nativa com a cultura dos povos originários. Os rios, de acordo com o Krenak, são seres que já estavam por aqui antes do surgimento do ser humano e do *antropoceno. No entanto, vêm sendo agredidos desde o surgimento da chamada “modernidade”. Embora ciente e consciente da agressão constante do homem à natureza, seus ensinamentos por meio de analogias,  lembranças da infância, andanças pelo mundo e visão holística, denotam que esses mesmos rios, emblema e metáfora do curso da vida, ainda estarão aqui após a nossa extinção. 

*ANTROPOCENO – considera a criação como feita expressamente para o homem.

O pressuposto que a natureza é um obstáculo para o progresso vem custando caro para nossa espécie. Ao desconhecer o valor de nossas riquezas, a humanidade vem desperdiçando e exportando seu bem mais precioso: os recursos naturais. Para Krenak, passamos tempo demais observando o futuro com a esperança de abundância, mas esquecemos que já possuímos mais do que precisamos, providos pela própria terra.

A florestania, termo derivado de cidadania e popularizado pelo movimento “aliança dos povos pela floresta”, do qual Krenak foi um dos fundadores, aposta não apenas na concepção de dependência intrínseca do indivíduo com a natureza, mas em “redes afetivas” do indivíduo com a natureza. Propõe um distanciamento de tudo que remonta ao “civilizado” (já que para esse pensamento, a terra é suja e a floresta selvagem) para criar um tipo de cooperação nova. Segundo Krenak, essa possibilidade só pode ser materializada por intermédio das novas gerações, que já trazem em si traços e ensinamentos da ancestralidade que, ao serem mesclados com sua identidade, promovem o novo.

“O coração no ritmo da terra” intitula o último texto do livro e traz a ideia de contraste aos valores individuais e grafados no imaginário que a sociedade capitalista propaga. Nas tradições indígenas, a criança possui uma ancestralidade inerente. Ao nascer, traz valores anteriores e à medida que se desenvolve, sua identidade presta respeito tanto ao passado quanto ao presente. Esse indivíduo representa a sabedoria dos antigos e a novidade da juventude. O novo que carrega o passado, o futuro ancestral. Se trata de uma experiência pautada no sentir e na comunhão, em entrar em contato e respeitar o ritmo da terra, já que para o escritor, essa é nossa tendência natural.

A leitura é indispensável e obrigatória para todos os que sofrem no sistema capitalista e tem, por consequência, a necessidade de visualizar outras possibilidades de existência. Diante de ameaças apocalípticas como o aquecimento global, endurecimento do mundo com uma escalada de guerras e todos se perguntando quando será a próxima pandemia, a possibilidade de superação desse contexto e a percepção de que nossas soluções estão no que condicionamos a excluir e enxergar como atraso, parece, no mínimo, uma perspectiva um tanto otimista.

A dificuldade de disseminação e conscientização de tais noções se dá por uma dupla problematização causada pelo mesmo objeto de críticas, o sistema capitalista: por um lado, a maioria dos indivíduos está mais preocupado em sobreviver no sistema do que  em conseguir pensar alternativas para uma nova civilização. A possibilidade de repensar um mundo como propõe Krenak é um privilégio, um luxo restrito a poucos, inclusive a intelectuais que, em sua maioria, são os consumidores de sua obra.

Outra crítica necessária presente na obra é a recusa do “mundo” ocidental em determinadas analogias de comportamentos da natureza. Campos científicos tradicionalmente eurocêntricos (como a química e biologia) foram de grande auxílio para a interpretação e compreensão da natureza e para o avanço na área da medicina e ciências humanas; apesar de traços racistas e preconceituosos, esses campos foram e são de grande auxílio para a permanência da humanidade no tempo presente. Dessa forma, parece pouco produtivo exorcizar qualquer traço de *colonialismo presente, sem antes realizar uma análise de contribuições positivas para a sociedade.

*COLONIALISMO – dominação de uma nação sobre outra por meios territoriais, culturais e econômicos.

Em suma, Futuro Ancestral é um chamado à terra, no sentido mais concreto possível, para observar seus movimentos e ensinamentos de forma insurgente com a cuidadosa orientação da sapiência dos povos originários, uma verdadeira filosofia originária que percebe a permanência do ser na natureza. Um livro excelente para nos despertar para o  que não conhecemos, mas já pressentimos. Imaginar um futuro é necessário, mas, de igual modo, é importante estar atento para não incitar radicalismos que promovam uma leitura austera do nosso passado, afinal, ele demonstra proeminentemente conter a chave para nosso futuro.

*INSURGENTE – aquele que se rebela contra algo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assuntos Relacionados

plugins premium WordPress
Inscreva-se aqui para receber nosso Boletim.
Siga-nos
Avante - Educação e Mobilização Social

Todos os direitos reservados