As mulheres negras são invisibilizadas desde a infância e o baixíssimo número de bonecas pretas disponíveis nas prateleiras é um dos indicadores e denotam a grande lacuna, que se abre na infância, no campo da representatividade, tão importante para a formação da subjetividade e da identidade de meninas negras.
Nas prateleiras, as bonecas pretas correspondem a 13,6% do total de bonecas fabricadas, segundo levantamento realizado pela Campanha Cadê Nossa Boneca? de 2023 – @cadenossaboneca. “Chegamos a mais de 100% de crescimento no número de modelos disponibilizados para compra no mercado online desde o início deste monitoramento”, celebra Ana Marcílio, psicóloga e consultora associada da Avante – Educação e Mobilização Social.
A Campanha nasceu em 2016 como uma grande ação de conscientização via mídia social, que buscou sensibilizar a sociedade sobre a relevância da discussão sobre representatividade no mercado de bonecas, por estas contribuem para formação social e intelectual das crianças, que, desde muito cedo, são apresentadas aos papéis, às normas e espaços sociais reproduzidos em suas brincadeiras.
O projeto é fruto das inquietações de Ana e da também psicóloga, Mylene Alves. Elas tinham o sonho de, no Natal de 2016, encontrar as prateleiras cheias de bonecas pretas. É claro que isso não aconteceu, mas a Campanha gerou visibilidade para o tema e engajou, logo nos primeiros meses, com mais de 25 mil seguidores em redes sociais.
Na ocasião, os conteúdos foram publicados em mídias de instituições de referência, como a Geledés – Instituto da Mulher Negra e o portal Lunetas, do Instituto Alana, além de grandes veículos de mídia de massa como O Diário de Pernambuco; o site Notícia Preta; site RollingStone; Época Negócios; site UOL; Educa Brasil; Capricho Brasil; Agência Brasil; além de entrevistas na Band; Metrópolis, entre outros.
Mais fortalecedora ainda foi a resposta de centenas de mulheres, professoras, bonequeiras, mães e/ou pais que compartilharam seus relatos mostrando o quanto o buraco do mercado, na produção e vendas de bonecas, além de deixar marcas, apontava uma falta de perspectiva da própria indústria.
Com o tempo, a Campanha ganhou as ruas, chegando a crianças, famílias, mulheres e especialistas. E o diálogo com representantes da indústria e do comércio de brinquedos passou a se estabelecer. Apesar da celebração pelo aumento de 100% nos modelos de bonecas pretas fabricados, os avanços foram lentos e poucos desde o início da Campanha.
O primeiro levantamento realizado junto aos fabricantes afiliados à Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos (ABRINQ), em 2016, revelou que a quantidade de modelos de bonecas pretas presentes em seus portfólios representava apenas 6% do total das fabricadas.
Em 2018, o levantamento revelou que pouco havia mudado em dois anos: apenas 7% dos modelos fabricados eram de bonecas negras. Em 2020, último ano em que a pesquisa foi realizada, mais uma vez, aproximadamente 6% do total da amostra eram de bonecas negras. O fato é que bonecas pretas são uma raridade nas linhas de produção de brinquedos e nas prateleiras de lojas infantis virtuais, o que se configura como um problema grave.
Cadê Nossa Boneca? 2023
Apesar do aumento na oferta de 6% para 13%, alavancado tanto por uma maior procura da população por bonecas pretas, como pelo próprio mercado, ao oferecer mais diversidade, o crescimento ainda deve ser considerado muito pouco ao se examinar a enorme desproporção ainda existente na quantidade de modelos de bonecas brancas e de bonecas pretas em um país que, segundo o IBGE, mais de 50% da população se autodeclara negra ou parda. Os 86,4% dos modelos brancos não refletem essa realidade ao serem confrontados com os 13,6% de modelos de bonecas pretas. Observe a desproporção na tabela a seguir:
O resultado do levantamento trouxe reflexões profundas a respeito da classificação das bonecas por faixa de desenvolvimento. Foram encontradas bonecas tipo bebê, criança e, também, bonecas adultas. A distribuição por cor entre esses segmentos é diferenciada para bonecas pretas e brancas. Observa-se que os modelos de bonecas pretas identificadas com a primeira infância, período de maior desenvolvimento da criança, e também muito utilizadas pelas crianças maiores nas brincadeiras, são bem menores do que as bonecas brancas.
“Quando o modelo de beleza é centrado na branquitude é muito mais difícil a construção de uma auto-estima positiva. Então, quando a gente está falando de bonecas pretas, estamos focadas na criança de hoje e de olho na mulher de amanhã”, enfatiza Mylene Alves.