“Por que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo?” A ideia, provocada por um professor, não sai da cabeça de uma criança, que desata a questionar os adultos com quem se encontra. Depois de muitas respostas, incapazes de satisfazer a sua curiosidade, a mãe lhe oferece uma hipótese, encerrando o conto do escritor moçambicano, Luís Bernardo Honwana, “As mãos dos pretos”. Assim como lá, a questão racial aparece para muitas crianças no Brasil, que logo cedo começam a criar suas hipóteses sobre as diferenças, sobretudo no ambiente escolar.
As discussões sobre raça e diversidade nas instituições de Educação estão propostas na Lei 10.639/03 – sancionada há 14 anos -, que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Apesar disso, muitas hesitam em tratar a temática. Para falar sobre a relação tão imbricada entre Cultura e Educação Infantil, conversamos com a consultora associada e coordenadora de ações estratégicas da Avante – Educação e Mobilização Social, Ana Olivia Marcilio.
Ana Marcilio coordena, desde 2016, a campanha Cadê Nossa Boneca?, chancelada pela Avante, que trata sobre a importância da representatividade na infância e conta com mais de 27 mil seguidores no Facebook da Campanha, dando início a uma rede nacional. Ana também atua como conteudista das formações voltadas para os direitos da criança, na Avante, a exemplo do Módulo do Brincar e de Organização do Ambiente, da formação a distância do programa Paralapracá, realizado pela instituição. Ambas as iniciativas alinham-se em uma luta histórica na busca pela garantia da representatividade na infância e uma qualidade do atendimento às crianças na Educação Infantil, com vistas ao seu desenvolvimento integral.
Recentemente, registros pedagógicos de professoras de redes parcerias do Paralapracá evidenciaram a existência de um olhar cuidadoso para a garantia dessa representatividade, ao desenvolver práticas que discutem a identidade na Educação Infantil, a partir de uma escuta cuidadosa das crianças.
Na entrevista a seguir, Ana Marcilio conta como esse trabalho vem colaborando para promover a discussão sobre diversidade nesse segmento, e a importância desse tema ser tratado já nessa etapa da vida.
Avante: Por que é tão importante discutir identidade e representatividade na infância?
Ana Oliva: A infância, sobretudo a primeira infância (0 a 6 anos) é central para o desenvolvimento do sujeito. É na primeira infância que a criança constrói as habilidades básicas do ser humano (andar, falar, simbolizar). É uma etapa também de construção de vínculos, identidade, auto estima. É nessa fase que o sujeito vai construir suas bases para a relação consigo mesmo e com o outro. Por isso, diversidade, representatividade, identidade e cultura são discussões centrais para a promoção de direitos e para a construção da subjetividade na Infância. E, nesse sentido, o brinquedo e o brincar podem apoiar na construção saudável dessas subjetividades e da própria sociedade. O brincar tem um papel central na estruturação do sujeito criança. Quando nesse brincar há um brinquedo, e esse brinquedo é uma representação humana, como as bonecas e bonecos, e eles não se parecem em nada com a criança que brinca, sua autoestima é afetada de forma negativa.
Além disso, se a criança só tem acesso a brinquedos que reconheçam e valorizem um padrão único de beleza e de cidadania, vai ser mais difícil essa criança reconhecer e valorizar a diversidade presente na sociedade. É importante que todas as crianças convivam com as diferenças, com o outro, desde a infância.
Avante: É papel da Educação Infantil promover essa discussão sobre identidade e representatividade na infância?
Ana Oliva: Sem dúvida. É na Educação Infantil que a gente começa a lidar com regras e limites da sociedade, a Educação Infantil é a instituição que formaliza os contratos sociais vigentes, no que tange à criança. Parte do currículo da Educação Infantil está centrada na formação do sujeito: ‘o sujeito no mundo’, ‘a relação com o outro’, ‘a valorização de si mesmo’, ‘o respeito ao outro’, ‘no aprendizado das regras sociais de convívio’. Ou seja, é terreno fértil para tratar da diversidade.
Além disso, na Educação Infantil, na concepção que trazemos na Avante, o ambiente também é educador. Se o professor compreende isso, esse ambiente se torna seu parceiro na prática pedagógica e na promoção do desenvolvimento integral da criança. E pra isso é preciso pensar e planejar esse ambiente, os materiais que o compõem, refletir sobre o que vai botar, tirar, como é que vai organizar, quem vai ajudar a organizar.
Parte desses materiais são o acervo dos brinquedos, que também compõem as brincadeiras, que, por sua vez, compõem a cultura da infância. As bonecas e outros brinquedos, então, são uma questão curricular. É preciso garantir a representatividade nesses brinquedos, para valorizar a autoestima e a construção da identidade. O brincar e o brinquedo, então, crescem em importância, e automaticamente se pensa: ‘que boneca é essa que eu estou trazendo? Que brinquedo é esse? Quem são meus alunos? De onde eles vêm? Quais são as famílias? Em que sociedade elas estão inseridas?’.
Não dá para escapar da necessidade de se ter, em um ambiente educador, bonecas pretas, indígenas, mais gordas; bonecos sem armas, pais de família; brinquedos que não sejam apenas carros para os meninos, e bonecas delicadas e adultizadas para as meninas, com seio, bumbum, cintura fina, de salto alto. Então, nada mais legítimo que uma professora da rede municipal de Educação Infantil se enfronhe nessa temática a partir de uma reflexão do currículo.
Avante: A campanha “Cadê Nossa Boneca?”, lançada em 2016, tem foco nas bonecas pretas. Por que elas ganham essa importância?
Ana Oliva: Vamos pensar na importância da existência e aplicação da Lei 10.639/03 para a Educação Infantil. O raciocínio é o mesmo. Mais da metade da população do país “se reconhece” como negra [Segundo dados do IBGE (2014), 53,6% da população brasileira afirma suas origens africanas]. A partir daí, é pensar que ter bonecas pretas é necessário para uma Educação mais justa, para alcançar as ideias de diversidade, de valorização do sujeito, de fortalecimento da autoestima, das inter-relações pessoais e sociais da criança. Faz todo o sentido, de convivência social, de respeito ao outro.
Avante: De que forma essa militância pela garantia da representatividade na infância, tem permeado as ações da Avante?
Ana Oliva: Historicamente, a Avante tem uma afinidade com a infância, com o brincar, e já vinha com ações, trabalhando, estudando e dialogando sobre participação infantil e o direito ao brincar no GT de participação infantil da RNPI [Rede Nacional Primeira Infância], nas ações do Infâncias em Rede, do Primeira Infância Cidadã [projetos institucionais de participação infantil]. Ou seja, há todo um investimento histórico da instituição nessa fase da vida.
Além disso, todo o trabalho da instituição, seja com criança, adulto, professora, liderança comunitária, SGD [Sistema de Garantia de Direitos], parte da escuta, da comunidade e do sujeito. E aí a gente constrói junto, em cima disso.
Sendo assim, a campanha Cadê Nossa Boneca? também resulta de uma série de escutas, vivências, retornos que a gente tem tido do nosso público [mulheres, juventude, crianças]. Por isso, quando a gente lança a Campanha, faz com base em todas as conversas que já tivemos com crianças ao longo do desenvolvimento dessas ações; do diálogo com a teoria acerca do brincar; da sua importância no desenvolvimento do ser humano.
Avante: Mas a Campanha não atua nesse contexto da Educação formal, não é isso? Qual exatamente o foco da Campanha?
Ana Oliva: Atingir a produção e comercialização das bonecas. A gente quer que as vitrines, pós-campanha, tenham uma outra cara, que não seja uma cara de loira e olhos claros, e que reflita um pouco mais quem somos.
Avante: A ação teve a adesão de mais de 400 pessoas nas redes sociais, em menos de dois meses e hoje, um ano depois, a página conta com mais de 27 mil seguidores. A que você atribui esse resultado, tão rapidamente?
Ana Oliva: Em primeiro lugar, eu creio que o sucesso da campanha se deve ao fato de que a demanda existe, e é histórica. É tão histórica que a gente vê a quantidade de iniciativas de fabricação artesanal de bonecas, para responder, minimamente, à essa demanda. A Cadê Nossa Boneca? não é um produto de marketing, nem apenas uma campanha de advocacy que a gente propôs, ancorada em uma inquietação nossa. Ela nasce de um acúmulo de conversas e brincadeiras com as crianças, com as famíias, e também nas escolas. Conversas sobre a própria criança, o brincar, o brinquedo, os direitos, a iniquidade, as diversas formas de violência, o impacto do racismo nesse público, enfim, acredito que o sucesso da campanha vem do fato de ela ser uma demanda que é muito maior que a nossa, é uma demanda real das crianças brasileiras.
A gente tem relatos, por exemplo, de professoras da Educação Infantil, que já vinham fazendo um esforço de construção de acervos de bonecas que refletissem as crianças com as quais elas trabalham. É um movimento que já existia, anterior à Campanha. Também já existia um movimento de pessoas, principalmente mulheres negras, lideranças comunitárias, preocupadas com a questão e que decidiram fazer suas próprias bonecas. Esse é um outro grande público que aderiu rápido à Campanha, as bonequeiras. De forma muito orgância, se deu início, inclusive, a uma rede de bonequeiras. Já temos cerca de 200 cadastradas no site e no face da Campanha.
Avante: Você já vê algum impacto dessa ação?
Ana Oliva: Nós realizamos uma pesquisa, que mostrou que somente 3% das bonecas produzidas na indústria brasileira é de bonecas pretas. Isso foi bem divulgado e ressoou enormemente. Há um impacto no comércio, porque a demanda de mercado pelas bonecas pretas já existe. Posterior à divulgação dessa Campanha, lançou-se uma linha de bonecas “inclusivas”, que tinha negras. Também fomos convidadas a participar de uma formação EAD de bonequeiras, por exemplo.
Cadê Nossa Boneca também nos ajuda a ter uma maior, ou mais apurada, dimensão do racismo e da questão do privilégio branco, que desde a fase da infância vai criando um apartheid social, mesmo que velado, como é a característica do racismo brasileiro. De como o ambiente que a gente vive pode reforçar o racismo e o privilégio branco, minando o desenvolvimento e a convivência saudável, em Salvador, na Bahia, no Brasil, por meio da construção de uma sociedade que não se reconhece na sua própria imagem.
A gente não tem como pensar em democracia num país que não vive a partir do paradigma do direito, mas sim do paradigma do privilégio, e no caso, o privilégio branco. A gente tem uma dificuldade muito grande, como sociedade, de abrir mão desse privilégio, e buscar a garantia de direitos, mesmo quando esse privilégio atinge a vida das crianças bem pequenas. Então, a Campanha também mostra o quanto a Educação é importante para fortalecer a democracia.
Nós não somos uma sociedade branca, loira, dos olhos azuis. Acho que acertamos no “Cadê Nossa Boneca?” como um caminho para a Educação Infantil botar em prática a Lei 10.639/03, no momento em que promove a valorização do brinquedo [a boneca e o boneco] como um importante elemento para promoção da representatividade e equidade na infância, e valorização da diversidade.