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Território e identidade étnico-racial no currículo  da Educação Infantil

Quando a energia elétrica não era uma realidade para a comunidade do Bate Facho, localizada na Rua da Bolandeira, no Imbuí, em Salvador (BA), os primeiros moradores da então ocupação acendiam fachos de luz com as folhas do licuri, palmeira típica do Nordeste, que produz pequeninos cocos. Hoje, a energia elétrica é uma realidade e são outros os problemas que preocupam seus moradores, entre os quais, as enchentes. E foi por conta delas que Cristiane Giffoni, diretora do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Castro Alves, localizado no mesmo bairro, causou um rebuliço no projeto arquitetônico da instituição, para assegurar que a unidade ficasse acima do nível da rua

“Aqui nas redondezas tem o Rio das Pedras e, quando chove, esse rio transborda. Aconteceram vários episódios de alagamento na região, inclusive, envolvendo nossos alunos. A gente tem muita preocupação com eles, que já até ficaram sem abrigo. Quando as obras estavam perto de começar, nós procuramos os engenheiros responsáveis e mostramos a necessidade de o prédio estar acima do nível da rua, pelo menos 1 metro e 30 centímetros. Eles entenderam e assim fizeram. Mudaram o projeto, teve aditivo… É uma alegria para a gente saber que isso não vai acontecer conosco e que podemos ser um espaço de abrigo para quem precisar”, conta Cristiane Valente, coordenadora pedagógica do CMEI.

A implicação do CMEI com o território é reflexo de uma proposta político pedagógica de profundo diálogo com o contexto das crianças e das famílias, além de uma construção de reconhecimento e valorização da identidade do lugar. O CMEI – que leva o nome do “Poeta do Povo”, pois a temática central da escrita de Castro Alves era o povo negro, suas angústias, sofrimentos, resistência, força – inspira o seu trabalho nas história e nas lutas da comunidade, que é um remanescente de quilombo, tornando viva a proposta de um currículo decolonial, inclusivo e antirracista.

Cristiane Valente nos explica que o Referencial Curricular Municipal para a Educação Infantil de Salvador traz, na página 71, que quando o foco é a primeira infância negra, há um sensível desafio, porque se lida com os mais invisíveis dos invisíveis, “por serem negras e, por serem, dentro da população negra, crianças”. “Desde a fundação do nosso CMEI, em fevereiro de 2013, que: conhecer, valorizar e respeitar a história e cultura afro-brasileira e africana, a fim de promover o fortalecimento da autoestima e autoconfiança e a construção da identidade racial de nossas crianças, tem sido a nossa preocupação. Preocupação esta que se encontra expressa por meio do eixo norteador ‘Construção da Identidade Racial e de Gênero’ da nossa Proposta Pedagógica, que está em reformulação, acompanhando as orientações da Rede”, conta.

O CMEI Castro Alves funciona em período integral e tem como missão contribuir para melhoria das condições educacionais da população de 02 a 05 anos, a partir da construção da identidade étnico-racial, social e de gênero, proporcionando o desenvolvimento cognitivo, social e emocional das crianças. 

Leis 10.639/2003 e 11.645/08 fora do papel

Há 20 anos, o Brasil sancionou a Lei 10.639/03, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e tornando obrigatória a inserção, no conteúdo programático das escolas públicas e privadas do país, a luta dos povos negros no Brasil, assim como o estudo da cultura e formação da sociedade nacional, “resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil”. Em março de 2008, o país avança um pouco mais e sanciona a Lei 11.645/08, que inclui a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígenas, além da afro-brasileira, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio.

A equipe do CMEI vem acompanhando essas reformulações e buscando caminhos para tirar as leis do papel por meio de estudos, vivências e práticas que garantam um maior aprofundamento sobre elas. “Durante a nossa jornada pedagógica, avaliamos a necessidade e a importância de garantirmos mais formação, pesquisa e mais projetos pedagógicos que tivessem como eixo central a importância das Leis 10.639/03 e  11.645/08 no desenvolvimento formativo das nossas crianças, incluindo não somente os professores e crianças, mas toda a comunidade escolar”, explica Cristiane Valente. 

Um dos focos do trabalho desenvolvido tem sido a valorização do local onde o CMEI está inserido, a partir da história de vida de cada criança e de suas famílias. O objetivo da equipe é “construir e fortalecer a identidade étnico-racial, evidenciando orgulho de pertencer a um grupo onde a sua história e sua cultura sejam valorizadas e respeitadas”, ressalta.

Casa nova de portas abertas 

O CMEI funciona em espaço próprio e novo, inaugurado em 08 de agosto de 2022. Para celebrar a casa nova, a primeira ação pedagógica, dentro da Semana de Arte e Cultura, foi convidar os moradores mais antigos do bairro para nos contar a história daquele território, andar pelas suas ruas para conhecer o local onde a maioria das crianças moram.

Cristine lembra que o objetivo foi conhecer e começar a construir a história do CMEI no território. “Quando a instituição recebe uma criança, recebe junto sua família. A parceria família-escola é processual, construída na convivência do cotidiano”, reflete. Relações de confiança e trocas entre educadores e familiares vêm se estabelecendo desde então por meio do diálogo efetivo e frequente, delimitando de forma clara os papéis, os direitos e deveres, e o valor de cada um.

Estabelecer e manter essa relação da escola com o território e as famílias é um grande desafio, mas também uma riqueza, na medida em que qualificar essa parceria de maneira respeitosa e aberta permite oferecer um espaço educativo para todas e todos, que trazem os seus valores, saberes e fazeres. “Estamos, TODOS, ensinando e aprendendo, nessa parceria”, ressalta Cristiane. Ela conta que o trabalho de mobilização das famílias é constante, para que elas participem desde a construção da proposta pedagógica, o fortalecimento do conselho escolar, os plantões e reuniões pedagógicas, os grupos de WhatsApp e as ações dos projetos.

Visita da Avante ao CMEI

Um grupo multidisciplinar, formado por aproximadamente 15 pessoas, entre assistentes sociais, psicólogos, diretores de organizações sociais e professores realizou uma visita ao CMEI Castro Alves, durante o Trocando em Miúdos 2023, evento realizado pela Avante – Educação e Mobilização Social. 

A atividade reuniu um seleto grupo de associados, colaboradores, especialistas, que não se reuniam presencialmente desde antes da pandemia da covid-19, promovendo um amplo debate sobre as agendas prioritárias no campo da Infância, considerando o atual cenário político de reabertura de diálogo com os movimentos sociais após seis anos de desmonte.

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