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Por uma Educação que resiste, desconstrói e liberta 

Há 20 anos, o Brasil sancionou a Lei 10.639/03, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e tornando obrigatória a insersão, no conteúdo programático das escolas públicas e privadas do país, a luta dos povos negros no Brasil, assim como o estudo da cultura e formação da sociedade nacional, “resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil”.

Em março de 2008, o país avança um pouco mais e sanciona a Lei 11.645/08, que inclui a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indígenas, além da afro-brasileira, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. No entanto, não prevê sua obrigatoriedade nos estabelecimentos de ensino superior para os cursos de formação de professores. A morosidade na implementação nas escolas revela um Brasil que ainda insiste em manter-se de costas para suas heranças e histórias. 

Crianças negras, crianças indígenas, crianças brancas, crianças todas, elas precisam ser educadas para o respeito ao outro, para o respeito às memórias ancestrais do mundo”, Profa. Dra. Bárbara Carine Soares Pinheiro.

Na contramão desse processo, algumas unidades escolares decidiram pautar seu Projeto Político Pedagógico por um currículo que resiste, desconstrói e liberta de padrões, conceitos e perspectivas impostas historicamente, e desenvolvem um pensamento e um olhar críticos, valorizando a diversidade, desde a mais tenra idade. Um pensamento que se traduz no conceito “Decolonial”, cunhado essencialmente por um movimento latino-americano emergente que tem como objetivo libertar a produção de conhecimento das bases do pensamento eurocêntrico. 

A Profa. Dra Bárbara Carine Soares Pinheiro, fundadora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, @umaintelectualdiferentona nas redes sociais, é uma das pessoas que atuam para que as Leis saiam do papel e se materializem nas escolas. O trabalho tem sido árduo: pesquisa realizada pelo Instituto Alana, em parceria com o Geledés – Instituto da Mulher Negra, revela que apenas 29% dos municípios brasileiros realizam ações consistentes de promoção da Lei.

“As escolas não cumprem a lei 10.639, o Ministério Público não fiscaliza, a Secretaria de Educação não fiscaliza porque todas essas complexidades sociais têm como seus agentes fundamentais a branquitude (…), infelizmente, o racismo estrutural e institucional é muito forte e é um grande responsável pela morosidade do cumprimento da Lei”, critica Bárbara Carine, que também é professora adjunta do Instituto de Química da UFBA e autora de livros, como Descolonizando saberes: mulheres negras na ciência (finalista do prêmio Jabuti 2021), História Preta Das Coisas: 50 invenções científico-tecnológicas de pessoas negras (finalista do prêmio Jabuti 2022) e o recém-lançado Como ser um Educador Antirracista.

Na Escola Maria Felipa, primeira escola afro-brasileira reconhecida pelo Ministério da Educação, as atividades tiveram início em 2019 com foco na Educação Infantil, pautada em um currículo decolonial e em práticas pedagógicas que garantam o que preconizam as Leis 10.639 e 11.645. Para Bárbara, é vital focar na formação de crianças para que elas possam “acessar uma história outra, uma ciência outra, uma filosofia outra, que positive pessoas negras, indígenas, colocando-as em uma posição paritária de humanidade”.

Confira um pouco mais dessa entrevista concedida à Avante.

Avante – Como a Educação Antirracista, na perspectiva do currículo decolonial, pode contribuir para uma escola mais acolhedora e segura?  

Bárbara Carine – A Educação Antirracista é uma Educação de combate, de enfrentamento, de superação das engrenagens racistas que operam em nossa sociedade e constituem a nossa subjetividade. A importância dela na Educação Básica é a de formar sujeitos diferentes, que vão compor um cenário sócio-histórico outro. A gente educa para uma sociedade que a gente almeja e a gente almeja uma sociedade sem racismo. Então, as crianças, todas elas, crianças negras, crianças indígenas, crianças brancas, crianças todas, elas precisam ser educadas para o respeito ao outro, para o respeito às memórias ancestrais do mundo, para o respeito à existência do outro. A Educação Antirracista pauta isso no âmbito do enfrentamento à hierarquização de pessoas por meio do artefato da raça.

Avante – Como promover a perspectiva de uma Educação Antirracista entre as/os educadoras/es? 

Bárbara Carine – É importante formar professores e professoras, seja pela via da Educação no nível superior, na formação inicial de professores, seja pela via continuada. As instituições educacionais e o Estado precisam se corresponsabilizar pela formação dos educadores e educadoras, que precisam acessar memórias ancestrais negras e indígenas positivadoras de existência. Então, não é apenas sobre denunciar o racismo hoje, mas é sobre acessar outras memórias, é sobre acessar uma história outra, uma ciência outra, uma filosofia outra, que positive pessoas negras, indígenas, colocando-as em uma posição paritária de humanidade.

Avante – Qual a importância de promover o respeito às diversidades na Educação Infantil? 

Bárbara Carine – A sociedade é diversa, mas luta-se contra a diversidade social o tempo todo, querendo manter as bolhas. Então, pensar o mundo como ele é, celebrá-lo a partir da sua pluriversalidade, desde a infância, é muito importante porque as crianças, na Educação Infantil, estão formando suas subjetividades e elas não vão ser formadas psiquicamente, a partir de marcadores sociais de depreciação, de rebaixamento do outro, de preconceito, seja ele de raça, gênero, de sexualidade, de cunho capacitista, etarista. Enfim, as crianças precisam ser educadas a partir de vivências diversas e de experiências com pessoas diversas.

Avante – A violência racial também está dentro das escolas. Como podemos enfrentá-la? Qual o papel da gestão, da coordenação pedagógica e das/os professoras/es nesse enfrentamento? 

Bárbara Carine – A violência racial está dentro da escola porque a escola é um complexo social e todos os complexos sociais são constituídos, são forjados, a partir das operações estruturais que, na minha leitura, a maior delas é o racismo. Então, tem racismo na escola porque a escola é um espaço de reprodução social. O que a gente precisa pensar é na formação de educadores e educadoras, o que a gente precisa pensar é na formação da comunidade escolar como um todo, dos familiares das crianças, o currículo da escola. Quais as imagéticas, quais as estéticas que são valorizadas na escola? Qual a concepção de desenvolvimento humano, de intelectualidade? Quem são as referências dessa escola? Porque tudo isso vai construir concepções de quem manda e de quem obedece na sociedade; de quem merece ser acolhido e de quem não merece, de quem tem privilégio e de quem não. 

Então, a escola precisa entender que ela é corresponsável por esse processo. Hoje, a gente tem vivido um grande surto de intolerância, de ódio social mesmo, de pessoas que têm realizado ataques em espaços escolares. É um problema de fato. 

O racismo é um problema social que a gente precisa enfrentar em todos os complexos, inclusive na escola. Então, ao passo que a escola precisa pensar em mecanismos de currículo, de contratação de profissionais negros e negras, de formação de professores e professoras nessa perspectiva, a escola hoje também precisa pensar em segurança de suas crianças, pois a gente tem vivido um cenário muito desolador nesse quesito.

Avante – Pesquisa realizada por Instituto Alana e Geledés – Instituto da Mulher Negra revela que apenas 29% dos municípios brasileiros realizam ações consistentes para implementação da Lei 10.639 nas escolas brasileiras. A que você atribui essa morosidade na implementação e que impacto isso causa?

Bárbara Carine – A morosidade na implementação das Leis 10.639 e 11.645 tem a ver com o racismo estrutural. Quem domina as estruturas é a branquitude e a branquitude se faz valer dos seus privilégios para não exercer, para não possibilitar, os direitos dos outros. Então, todos os mecanismos, todas as engrenagens do sistema se organizam de modo a manter, a garantir os seus privilégios. E aí, as escolas não cumprem a lei 10.639, o Ministério Público não fiscaliza, a Secretaria de Educação não fiscaliza, porque todas essas complexidades sociais têm como seus agentes fundamentais a branquitude. E a branquitude está preocupada com as suas pautas, com os seus interesses. Infelizmente, o racismo estrutural e institucional é muito forte e é um grande responsável pela morosidade do cumprimento da Lei.

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