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Por falar em volta às aulas: Intersetorialidade como caminho

O assunto é – uma enfermidade epidêmica amplamente disseminada – pandemia. Uma crise mundial, não apenas sanitária, mas educacional, econômica, social. Todos são atingidos. Todos são, de certa forma, responsáveis pelo que acontecerá daqui para frente. As discussões sobre a volta às aulas correm à boca miúda em cada casa, nos grupos de WhatsApp, em cada instituição, em cada rede (privada e pública), em cada município. Mas o diálogo pouco acontece entre os diferentes atores. O mesmo acontece nos setores da sociedade: saúde, assistência social, cultura, educação. Será que conseguimos bons resultados sem uma reflexão e uma ação coletiva? Será que há alguma possibilidade do mundo voltar a ser o que era? Da Educação voltar a ser o que era? Quando – “o que era” – já se mostrava para lá de ultrapassado e agora soa como história num velho livro empoeirado, esquecido na estante, carcomido pelas traças. 

Na segunda entrevista da série: “Por falar em volta às aulas” Maria Thereza Marcilio, presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, mestre em Educação e participante ativa do diálogo nacional e internacional sobre temáticas relacionadas às infâncias e garantia de direitos, em especial o direito à educação para todos, provoca, atiça, mas também aponta caminhos para um acordar que, a cada dia, se faz mais urgente. 

“Se nós não nos sentimos contemplados, nem protegidos, se achamos que as decisões são impostas, vamos assumir o protagonismo, vamos arrombar portas, vamos invadir os espaços, literalmente. Pode ser virtual, inclusive (…) O papel é esse! É de cada um usar o seu espaço na sociedade, a sua competência, o seu lugar de cidadão. Nós precisamos exercer isso e exigir”. Com a palavra, Maria Thereza Marcilio.

A intersetorialidade, ou seja, o diálogo entre diferentes setores da sociedade, em especial poder público (saúde, educação, assistência social), para a definição desse retorno tem sido bastante debatida. Você considera essa realidade possível no Brasil de hoje?

A intersetorialidade é fundamental. Uma pandemia não é assunto de uma área, a pandemia tem um componente que atinge a saúde, outro que atinge assistência – pela proteção, à Educação – no sentido das escolas, pois tudo, tudo é afetado pela pandemia. Saber se tem transporte, lazer e cultura, o que pode trabalhar, não só para que os profissionais da área sejam atendidos, mas também como se pode fazer para um ajudar o outro.  A gente não tem essa Cultura. A cultura brasileira, e em muitos outros países, é a de dividir em pedaços. Dividimos as pessoas, tratamos as pessoas como se fossem fragmentadas e esses setores não conversam. 

É muito difícil ter uma ação organizada e coordenada intersetorialmente. A pandemia dá essa oportunidade. Ou fazemos isso hoje ou não conseguimos sair, superar essa fase. E, de novo, a escola é um lugar privilegiado para isso. Quantas vezes é na escola que se detecta, por exemplo, abuso e violências contra a criança, problemas de saúde da criança. Muitas vezes, é o professor que detecta, é o professor que identifica e pode acionar o órgão de saúde, o órgão de assistência e a própria família. 

Essa abordagem intersetorial se tornou uma necessidade urgente, sem a qual, podemos ficar perdidos na pandemia e não encontrarmos a saída. Se ela é possível, nós é que temos que determinar. E, para mim, hoje estou muito voltada para uma coisa,uma noção que eu tive contato há 40 anos atrás,  quando trabalhava no MEC. Naquela época o professor Pozenato, da Universidade de Caxias do Sul, dizia que, às vezes, para vencer uma coisa que é muito grande, muito densa, muito difícil – na época ele falava da ditadura -, a gente precisa acreditar na utopia do fragmento, na utopia da coisa pequena, pensar que no pequeno, trabalhando no pequeno podemos furar a resistência do grande. E eu digo que hoje estou nessa linha, da utopia dos fragmentos, de trabalhar na escala municipal, na escala comunitária. Então, naquela escola, naquela comunidade, com aqueles profissionais, com aquelas famílias, com os profissionais daqueles setores, daquela comunidade, conseguimos, talvez, sair dessa situação. Acredito que é possível, sim, se começarmos desde a base. 

Qual o papel de cada integrante desse quebra cabeça (gestores, professores, comunidade, em especial as famílias)? 

O papel de cada um é de provocar isso. Gostaria muito hoje, e tenho trabalhado muito nesse sentido, nas lives que eu faço e nas reuniões que participo. Nós estamos sem governo e pior do que isso nós estamos desgovernados perversamente, nós hoje somos o país que tem ranqueado como o pior país que lidou e lida com a pandemia. Somos atacados de todos os jeitos. Então, a impressão que tenho, é que para isso acontecer, os profissionais que estão na linha de frente, na base, na unidade de saúde da comunidade, nós – professores, saúde coletiva, conselheiros tutelares, que atuam na proteção das crianças e adolescentes, nós temos que ser protagonistas. Se nós não nos sentimos contemplados, nem protegidos, se achamos que as decisões são impostas, vamos assumir o protagonismo, vamos arrombar portas, vamos invadir os espaços, literalmente. Pode ser virtual, inclusive. Temos que ser ouvidos, levar uma proposta, temos que dizer como as coisas podem acontecer juntos, intersetorialmente, assumindo a força que temos e que talvez não esteja sendo utilizada. O papel é esse! É de cada um usar o seu espaço na sociedade, a sua competência, o seu lugar de cidadão. Nós precisamos exercer isso e exigir. 

Quando falo em intersetorialidade, não é para esquecer que nós temos que estar juntos, e muito, das famílias e dos estudantes. Eles têm que fazer parte das comissões, sejam elas municipais, sejam elas escolares, porque precisamos saber como as famílias estão e eles é que vão nos ajudar a enxergar formas de resolver, eles é que vão nos mostrar a realidade. Isso aconteceu para muitas redes, para muitas famílias. Houve um estreitamento de vínculos. As redes, que conseguiram manter contato frequente com as famílias, construíram uma parceria, que provavelmente vai ter um impacto muito positivo nas relações futuras.  As famílias viram com mais clareza o papel da escola e o papel do profissional, dos professores, dos apoiadores, das merendeiras, dos porteiros, de todos que estão na escola, e a comunidade escolar, de dentro da escola, enxergou melhor as famílias, o esforço que elas tinham que fazer para ajudar seus filhos, as dificuldades do dia a dia dessa família, as limitações que eles tinham e o que foi feito. 

E as crianças e os adolescentes?

Então, construiu-se, onde se manteve o contato, uma parceria, e isso tem que ser mantido.  As famílias têm que ter voz e vez dentro da escola e nos órgãos de educação, assim como as crianças e os adolescentes. Nós temos feito escuta de crianças, e não só nós, a Avante, a Rede Nacional da Primeira Infância [RNPI] fez, outras entidades fizeram, e o que as crianças dizem pode nos ajudar a construir essas saídas, porque elas dizem que sentem falta do contato dos colegas, dos amiguinhos, sentem falta das professoras, sentem falta de estar na escola, sentem falta de estarem próximas. Então, é  importante dar voz a essas crianças e dar voz aos adolescentes, e os adolescentes também dizem a mesma coisa. Eles precisam ser escutados, e podemos criar espaços e momentos em que eles participem ativamente. O que eu priorizaria para um retorno, além de seguro com qualidade, é isso :  vamos acolher, vamos escutar e vamos recriar, refazer práticas. Vamos repensar, sentar,  fazer formação, ler mais, entender como podemos agrupar melhor as crianças na escola e os adolescentes, como que a gente pode usar melhor os espaços, que tipo de conteúdo. 

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