A Alfabetização é sempre um tema polêmico quando o assunto é Educação, mesmo a temática sendo abordada de forma clara e incisiva por instituições e profissionais especializados, que têm a criança como centro do processo pedagógico, o retorno da pauta é cíclico.
Início de governo, novos olhares, políticas públicas sendo reconstruídas, partindo do princípio de que toda criança tem direito a uma escola equitativa, plural e acolhedora, um espaço no qual possa contar com a educação e o cuidado apropriados à sua faixa etária e em que seja respeitada a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, a Avante – Educação e Mobilização Social, por meio da palavra da sua presidente, Maria Thereza Marcilio, abre esse diálogo e envia ao Ministério da Educação uma síntese elucidativa a sobre a relação da alfabetização com a Educação Infantil, um segmento com vida própria, propósito próprio.
A seguir o texto assinado por Maria Thereza, boa leitura!
Educação Infantil e alfabetização: qual a relação?
A função da educação tem uma importância capital para restaurar os espíritos e o mundo; mas para tanto é preciso reformar a educação para que seja capaz de, por sua vez, fazer reformas (MORIN, 2004).
Há temas de educação que ciclicamente são debatidos e quando retornam parece que o caminho percorrido não é levado em conta e as questões básicas se repetem. Essa forma de trazer esses temas não ajuda, seja à tomada de decisões relacionadas às políticas públicas, seja à compreensão do fenômeno, além de favorecer à deletéria cultura de um fracasso histórico que induz a soluções apressadas que, estas sim, não ajudam a avançar. De tão repetitiva, é de se perguntar quem se beneficia com tal situação?
As questões relativas à educação infantil e ao processo de alfabetização são exemplo claro dessa situação. Mais uma vez, e agora diante das consequências da pandemia sobre as crianças, suas famílias e à escolaridade de um modo geral, coloca-se a questão sobre o papel da educação infantil na alfabetização das crianças. Este é um campo fértil para a chegada de receitas metodológicas, de redução do papel da EI a uma preparação para o ensino fundamental e de um processo multicausal a um treinamento compartimentalizado as inúmeras experiências bem-sucedidas nas escolas brasileiras, sejam elas públicas ou privadas. Ignora-se também os investimentos de recursos e tempo para o desenvolvimento profissional e melhorias na oferta do serviço, o que não é um bom começo.
Para marcar a posição da Avante-Educação e Mobilização Social no campo da Educação Infantil e da alfabetização, começamos por deixar claro que sim, há uma relação profunda, intrínseca e importante entre ambas e vamos argumentar porquê e como se dá essa relação e de que forma ela está pactuada nos marcos legais do país.
Começando pela concepção de linguagem escrita: trata-se de uma entre muitas linguagens que nós seres humanos desenvolvemos para nos comunicarmos, para marcar nossa presença no mundo e para nos desenvolvermos. Essas linguagens se complementam, se constroem ao longo da vida humana e têm na primeira infância um período de abertura e de permeabilidade único. Já aí demarca-se a ideia de processo: a apropriação da linguagem escrita não é algo pontual, não é como aprender um código, não é uma decifração. A linguagem é algo que nos constitui como seres humanos, que nos forma e nos transforma e, a linguagem escrita, portanto, não é apenas um registro, um instrumento de comunicação. Ela forma e transforma a nossa mente, a nossa maneira de pensar, bem como marca o nosso lugar no mundo.
Essa concepção de linguagem escrita já indica que o processo de apropriação não passa por questões reducionistas de método, de aprender um código para depois compreender, ao contrário, ela se relaciona com outras linguagens: gestual, oral, artística, por exemplo; com a brincadeira, com o jogo simbólico; não é um conteúdo ou apenas um conjunto de signos “ensináveis” a partir de treinos e repetições. Antes, é uma prática social, é um construto social que se efetiva por um sistema de representação abstrato, sem uma relação direta entre o significado e o signo que o representa. É, portanto, algo que é aprendido dentro da prática social: para que serve, como se usa, as diferentes formas de usá-lo. Aprender a ler e a escrever significa compreender, interpretar, analisar: é algo muito mais complexo do que uma técnica ou um método. Essa concepção foi belamente formulada por Paulo Freire, quando disse em seu livro, já clássico, A importância do ato de ler (Cortez editora, São Paulo, 1989 Coleção Polêmicas do nosso tempo): A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele.
Dito isso, avançamos no sentido de que estamos imersos em culturas letradas desde o nascimento. Este objeto está presente na vida social de diferentes maneiras e com suportes os mais variados, cumprindo inúmeras funções. Como disse Emilia Ferreiro, a escrita é importante na escola pelo fato de que é importante fora dela, não o contrário. E ainda: Essa transformação da escrita em um objeto de propriedade escolar exclusiva fez com que perdesse algumas das funções que a justificam como objeto de importância social. A escrita transformou-se em um instrumento para passar de ano. (Cultura escrita e alfabetização, Artmed, Porto Alegre,2001).
Defender essa concepção significa não pré-fixar tempos nem limites. O processo de alfabetização não começa aos seis anos nem se encerra ao final do primeiro ano do ensino fundamental, portanto não há uma “preparação para” que deve começar na pré-escola. Esses são tempos e recortes do sistema de ensino. O processo de alfabetização se inicia desde o nascimento e se constrói a partir de múltiplas experiências, que podem e devem ser proporcionadas nos espaços de educação infantil. A aprendizagem da linguagem escrita começa, inclusive sem a mediação do ensino formal e sistemático de um adulto, com a participação da criança em contextos de produção e de interpretação da linguagem escrita; espontaneamente já se indagam sobre ela, sobre o seu significado e as relações. Negar esse saber e introduzir uma sistematização a partir do olhar do adulto alfabetizado sobre a língua, não só a descontextualiza e priva de significado como complica sua apropriação. Significa transformar um objeto de conhecimento em objeto de ensino, o que é uma perspectiva empobrecedora e reducionista. Questionar essa posição nos leva a recolocar aspectos importantes como o que é errado e qual o papel do erro na construção do conhecimento, o que se deve esperar dos métodos de ensino e do papel docente na aprendizagem e quais os limites e possibilidades do sistema escolar. Esse último aspecto é de fundamental importância em um país tão desigual, com recursos mal distribuídos e, hoje, fortemente polarizado, onde até os dados são ideologizados.
Finalizando, a aprendizagem da linguagem escrita tem indubitavelmente um lugar na Educação Infantil como um conhecimento social importante e presente na vida cotidiana e, portanto, como um direito das próprias crianças.
Isso nos leva a trazer a criança para o centro da conversa e a compreender qual a concepção de desenvolvimento que nos guia e como se estabelece a concepção de infância para que se possa entender como a aprendizagem da linguagem escrita se situa na educação infantil. Todos os estudos e pesquisas desenvolvidos desde o século passado nos apresentam a criança como um ser potente, curioso, aberto para experimentar e conhecer o mundo e a se relacionar desde que encontre um ambiente de cuidado e atenção que garanta o seu pleno desenvolvimento. São vários os autores e pesquisadores que demonstram a importância do vínculo entre o cuidador e a criança, desde o bebê, o respeito à individualidade, a promoção da autonomia seja pela liberdade de movimentos, seja pelo brincar livre e finalmente pelo respeito ao tempo e ao espaço necessários ao desenvolvimento pleno e sadio. Esse olhar para a criança, colocando-a no centro e como sujeito produz um deslocamento da posição do adulto para o lugar de observador e organizador de ambientes, interlocutor afetivo e engajado no processo de desenvolvimento de cada criança. Como tal, cabe a ele proporcionar as condições e possibilidades de múltiplas experiências seja na natureza, seja com objetos socioculturais de modo que a criança explore, conheça, invente estratégias, adquira competências, comece a entender as funções dos objetos, a diferença de significado de contexto para contexto.
É importante destacar que o modo particular e próprio de a criança se desenvolver é o brincar.
“Brincar é um modo de viver, de ser criança, é a fonte do desenvolvimento. Portanto a fonte do desenvolvimento do ser humano e o ponto de encontro entre dimensões afetiva e cognitiva. Por meio do brincar, a criança adquire maneiras de entrar em relação com o mundo externo, desenvolve as potencialidades cognitivas, relacionais e afetivas. Cria e experimenta as capacidades cognitivas, descobre a si mesma, relaciona-se com os colegas da mesma idade, desenvolve a própria personalidade. É pelo brincar que o corpo se torna protagonista, constrói o contato com os materiais, insere-se em situações e experiências que criam trocas; de ideias, de jogos, de materiais. Ocasiões que podem se transformar em instrumentos de mediação e de escuta do outro, que podem determinar um importante enriquecimento dos conhecimentos individuais.
O brincar representa, de fato, um fator de desenvolvimento cognitivo nos primeiros anos de vida de um indivíduo.” Daniela Martini (O projeto educativo: Conexões e Significados, in Educar é a busca de sentidos. Editora Ateliê Carambola Escola de Educação Infantil, 2020.
E, vejam só, o Brasil, a partir da contribuição de pesquisas e estudos feitos no âmbito das suas instituições de ensino superior, em diálogo com o que se estuda no mundo; da militância de educadores de todo o país, comprometidos com a infância e com a educação como direito de tod@s; da sensibilidade e atuação de agentes governamentais e parlamentares tem, desde algum tempo, construído um marco legal e normativo contemporâneo a toda essa construção e que o coloca em destaque na comunidade mundial.
A Constituição Federal de 1988 já define o lugar e o caráter da Educação Infantil nos seguintes artigos:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Em seguida, no artigo 208 ela diz que o Estado deve efetivar esse direito e no caso da Educação Infantil o atendimento será feito em creches e pré-escolas.
Já a LDB 94/96, que organiza a educação nacional, diz no seu artigo 29:
A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
Ao nomear a educação infantil como uma etapa da educação básica, a Lei assegura objetivos e formas de oferta específicos a ela e não como algo preparatório para a próxima etapa. Reconhece nela sua especificidade assim como sua finalidade, que é o pleno desenvolvimento da criança.
A partir desse marco legal foram construídas as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (DCNEI), um documento que baliza e dá forma ao que deve estar presente na Educação Infantil. Elas se constituem em um guia fundamental para orientar os municípios a organizar a oferta nesse segmento.
Alguns dos conceitos explicitados no documento merecem ser citados:
2.2 Criança: Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura.
2.3 Currículo: Conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade.
2.4 Proposta Pedagógica: Proposta pedagógica ou projeto político pedagógico é o plano orientador das ações da instituição e define as metas que se pretende para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças que nela são educados e cuidados. É elaborado num processo coletivo, com a participação da direção, dos professores e da comunidade escolar.
Além desses conceitos básicos, as DCNEI apresentam princípios que devem ser respeitados pelas propostas pedagógicas, quais sejam: Éticos: da autonomia, da responsabilidade, da solidariedade e do respeito ao bem comum, ao meio ambiente e às diferentes culturas, identidades e singularidades; Políticos: dos direitos de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática; Estéticos: da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais.
Nas DCNEI estão também definidos os objetivos da Proposta Pedagógica das instituições, que não deixam dúvidas sobre o propósito da Educação Infantil: garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças.
Afirma ainda a indissociabilidade do cuidado no processo educativo e a indivisibilidade das dimensões expressivo motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural da criança entre outros fatores importantes.
Finalmente um aspecto fundamental é a apresentação dos eixos norteadores das práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil: as interações e a brincadeira. Estes mesmos eixos estão presentes na Base Nacional Curricular Comum de EI e orientam a formulação desta em campos de experiência, mantendo assim a coerência entre os dois documentos norteadores: As experiências devem promover o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança; favorecer a imersão das crianças nas diferentes linguagens e o progressivo domínio por elas de vários gêneros e formas de expressão: gestual, verbal, plástica, dramática e musical; possibilitar às crianças experiências de narrativas, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e escritos; recriar, em contextos significativos para as crianças, relações quantitativas, medidas, formas e orientações espaço temporais; ampliar a confiança e a participação das crianças nas atividades individuais e coletivas; possibilitar situações de aprendizagem mediadas para a elaboração da autonomia das crianças nas ações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar e vivências éticas e estéticas com outras crianças e grupos culturais, que alarguem seus padrões de referência e de identidades no diálogo e conhecimento da diversidade; incentivar a curiosidade, a exploração, o encantamento, o questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza; promover o relacionamento e a interação das crianças com diversificadas manifestações de música, artes plásticas e gráficas, cinema, fotografia, dança, teatro, poesia e literatura assim como a interação, o cuidado, a preservação e o conhecimento da biodiversidade e da sustentabilidade da vida na Terra e o não desperdício dos recursos naturais; propiciar a interação e o conhecimento pelas crianças das manifestações e tradições culturais brasileiras; e finalmente possibilitar a utilização de gravadores, projetores, computadores, máquinas fotográficas, e outros recursos tecnológicos e midiáticos.
Em relação a articulação com o Ensino Fundamental, a orientação das DCNEI é que a proposta pedagógica deve prever formas para garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, respeitando as especificidades etárias, sem antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental.
Como é facilmente notável a concepção de infância como um tempo de abertura, pleno de possibilidades, e de criança como sujeito ativo, produtor de cultura, descobridor de mundos está traduzida bela e claramente nas Diretrizes Curriculares Nacionais e organizada na BNCC da EI. Da mesma forma, lá estão a concepção de linguagem escrita como uma das linguagens da criança e o lugar dela no conjunto das experiências as quais devem estar no ambiente da EI traduzindo assim as possibilidades do processo de alfabetização ser potencializado neste segmento. Destarte não há melhor forma para garantir a qualidade da oferta de Educação Infantil que não seja fazer valer todo o caminho construído seja pela ciência, seja pelos documentos à luz de experiências práticas bem sucedidas. É necessário mencionar que ao lado desse reconhecimento, é fundamental considerar todas as outras indicações contidas não só nos trechos citados dos documentos, como também as que se referem à qualidade da formação dos profissionais, à qualidade e adequação das instalações físicas, ao atendimento à demanda por vagas, ao respeito à cultura comunitária, à imprescindível articulação com outras políticas públicas para fazer valer a concepção de integralidade do sujeito entre outras.
Enfim, não são receitas rápidas, métodos mágicos, nem a antecipação de conteúdos que nos levarão a bom termo. A tarefa que nos é imposta é a de vencer a distância entre intenção e gesto, respeitando a história e o tempo necessário para formar e transformar a realidade.