Formadoras discutem identidade no contexto da Educação Infantil

Quando a educadora e gestora da Escola Municipal São Bento, no município de Olinda (PE), Heraldina Simões, planejou uma atividade voltada para a afirmação dos elementos identitários, não imaginava que a turma – de maioria negra – iria apresentar desconforto em relação ao pertencimento étnico-racial. “Começamos a conversar sobre a cor dos olhos, da pele, e cada um foi dizendo que era branco, porém na turma só tinha uma criança branca”, lembra.


A experiência foi descrita no registro “Minha cor é marrom”, que narra como Vinícius e outras crianças não aceitaram a ideia de se pintar de preto, durante uma brincadeira de pintura corporal realizada com diversas cores. “Houve toda uma rotina para se chegar à pintura. Passei uma semana pensando em como fazer uma atividade que causasse mais impacto, que fizesse eles se olharem, se perguntarem. Essa escuta, olhar, gestos, risos, recusa, foi tudo visto e questionado. As palavras preconceito, cor, marrom, moreno, branco, clarinho, tudo bem. Mas a palavra ‘negro’ foi muito rejeitada. E por quê?”, questionou Heraldina.


O comportamento da turma reforçou a relevância da reflexão sobre a construção da identidade nos primeiros anos e o quanto reconhecer e valorizar a criança, não apenas pelo que ela faz, mas, principalmente, pelo que ela é, é um importante passo para acolher a diversidade étnica. Estes aspectos foram contemplados na proposta de Heraldina, uma das formadoras do Paralapracá em Olinda, município parceiro na formação de profissionais da Educação Infantil. Realizado pela Avante – Educação e Mobilização Social, o programa tem contribuído para valorizar a infância, por meio de princípios como: a cultura do brincar e a escuta sensível das crianças.


Brinquedos X Diversidade


De várias formas, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI, 2009) apontam a relevância da abordagem étnico-racial no cotidiano das instituições. No art.7º reitera que “a proposta pedagógica das instituições de Educação Infantil deve garantir que elas cumpram plenamente sua função sociopolítica e pedagógica: construindo novas formas de sociabilidade e de subjetividade comprometidas com a ludicidade, a democracia, a sustentabilidade do planeta e com o rompimento de relações de dominação etária, socioeconômica, étnico-racial, de gênero, regional, linguística e religiosa.”


“Na Educação Infantil, as crianças já começam a conhecer o corpo, as diferenças e semelhanças entre os colegas, escolhem com quem se relacionar, brincar. Então, é fundamental que se aborde questões sobre a diversidade, para promover o respeito mútuo, reconhecendo essas diferenças”, pontua Ana Paula Feitosa, coordenadora pedagógica do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Rosane Collor, de Maceió (AL), outro município parceiro do Paralapracá.


Em Maceió, a importância de tratar a diversidade ficou ainda mais explícita quando a gestão do CMEI Rosane Collor se deparou com a dificuldade em encontrar bonecas negras para as crianças. Com um déficit grande de brinquedos – objeto importante na construção da autoimagem das crianças –, o CMEI estabeleceu como prioridade a aquisição de novos brinquedos, fazendo valer o direito ao brincar. No entanto, faltavam recursos financeiros. “Parecia um sonho distante, mas em uma das formações do Paralapracá, a diretora do CMEI Tobias Granja socializou sua experiência e quais caminhos percorreu para comprar brinquedos, utilizando recursos que chegam do PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola, do MEC) custeio e PDDE capital”, explica Ana Paula Feitosa.


A gestão do CMEI Rosane Collor seguiu os mesmos passos, viabilizando a compra dos brinquedos. O que a equipe não contava era com a baixa oferta de bonecas negras, único brinquedo que não conseguiram comprar em maior quantidade. “Por que não começar a refletir sobre a aquisição dos brinquedos? Nesse caminhar e de posse de um recurso que possibilitava a compra de brinquedos, constatamos nas várias lojas que visitamos que se tinha pouca quantidade de bonecas negras no mercado. A maioria delas é branca e de olhos claros, e por isso, adquirimos uma quantidade menor do que havíamos planejado. Este ano, adquirimos mais bonecas, e compramos mais bonecas negras para tentar equilibrar e enriquecer o acervo das crianças. Mas constatamos, mais uma vez, que as bonecas brancas são maioria nas prateleiras”, conta Ana Paula Feitosa, que compartilhou toda a experiência no registro E assim chegaram os brinquedos!


Cadê Nossa Boneca?


A ausência de brinquedos afirmativos está diretamente ligada à sub-representação dos afrodescendentes na sociedade brasileira, mesmo considerando que negros representam 53,6% da nossa população, segundo dados do IBGE. Situação que reflete em problemas de autoidentificação e, consequentemente, no processo de elevação da autoestima da criança afrodescendente. É o que alerta a campanha Cadê Nossa Boneca?, realizada sob a chancela da Avante, com a finalidade de colaborar para reverter esse cenário.


“Eu sabia que o Paralapracá era um espaço fértil para plantar essa semente. Pelo seu pensar sobre organização do ambiente e uso de materiais, sobre a relação da educação formal com a comunidade que a cerca e com as crianças/famílias às quais atende. A Campanha teve um acolhimento e uma valorização imensa de vários públicos, principalmente de pessoas comprometidas com a educação, sobretudo, a Educação Infantil no contexto público e/ou comunitária”, conta a consultora associada da Avante, uma das idealizadoras da “Cadê Nossa Boneca?” e mediadora no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) do Paralapracá, no eixo formativo Assim se Brinca, Ana Oliva Marcilio.


Segundo Ana, o AVA do Paralapracá se apresentou como um relevante mecanismo de diálogo para a Campanha, ao disponibilizar vários relatos sobre os desafios e caminhos percorridos, e as estratégias que as profissionais da Educação Infantil encontraram para garantir que as crianças tivessem convívio com bonecas pretas.


Paralapracá


O programa Paralapracá é uma frente de formação de profissionais da educação infantil, realizado pela Avante – Educação e Mobilização Social, com apoio do Instituto C&A. Nosso trabalho se desenvolve a partir da formação continuada de formadores, com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade do atendimento às crianças na Educação Infantil, com vistas ao seu desenvolvimento integral. Fazemos isso em parceria com as secretarias municipais de Educação, valorizando, ampliando e fortalecendo os saberes de cada localidade aonde vamos.


O Paralapracá foi lançado em 2010, como um projeto do Programa Educação Infantil do Instituto C&A, originalmente focado na região Nordeste. Desde então, chegou a dez municípios, em dois ciclos de implementação. No ano de 2015, com a chancela do Guia de Tecnologias Educacionais do MEC, ganhou caráter nacional.

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