Formação de educadores – desafio para Educação de qualidade para todos


Por: Andréa Fernandes

Você sabia que, no Brasil, a única disciplina com temática inclusiva obrigatória para todos os cursos de licenciatura (decreto nº 5.626/2005) é a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS)? Obviamente, voltada para a comunicação, não para a aprendizagem. A ONG Avante – Educação e Mobilização Social e o projeto Montessori T21, que trabalha Educação Montessori para crianças com Síndrome de Down, foram buscar, em termos quantitativos e qualitativos, outras disciplinas voltadas para esta temática, com foco na aprendizagem. Foram consultadas as matrizes curriculares de 14 universidades públicas brasileiras, no curso de licenciatura em pedagogia, das cinco regiões do país. O resultado foi uma média de apenas 2,8% de carga horária de todo o currículo de formação do professor dedicada à Educação Inclusiva. E em sua maioria com conteúdo que se restringem a uma abordagem da legislação e da diversidade, passando longe das aprendizagens.

Mesmo diante de exigências legais, que “recomendam” a inclusão da disciplina Aspectos ético-político-educacionais da normalização e integração da pessoa com deficiência, prioritariamente, em todos os cursos de licenciatura (§ 2.º do artigo 24 do Decreto n.º 3298, de 20 de dezembro de 1999 e Portaria n.º 1793/94), há universidades que não cumprem a legislação e não oferecem nem mesmo a matéria de introdução a LIBRAS, caso da Universidade Federal de Rondônia.   

Fica, então, a pergunta, como tornar os currículos das escolas inclusivos para, finalmente, conquistarmos uma Educação, constitucionalmente garantida, como um direito fundamental de todos, se o currículo das universidades não avançam? Um reflexo da disparidade entre os avanços na legislação e a prática educacional no nosso país. O Brasil avançou no âmbito das Leis, sem dúvida. Saímos dos enquadres da ditadura e adentramos na democracia por meio da construção de documentos de referência como a Constituição Federal (1988), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990); a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996), a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007), e a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva (2008), para citar algumas, que consolidaram a temática da inclusão, fortalecendo e ampliando as diversas vozes da sociedade civil.

 
Em seu processo de avanço legislativo, o Brasil absorve as reflexões oriundas da Declaração de Salamanca. O documento foi elaborado na Conferência Mundial sobre Educação Especial, em Salamanca, Espanha, em 1994, com o objetivo de fornecer diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais de acordo com o movimento de inclusão social. Por aqui, respirávamos o atraso com a promulgação, nesse mesmo ano, da Política Nacional de Educação Especial, que propunha a chamada “integração instrucional”, permitindo o ingresso em classes regulares de ensino apenas as crianças com deficiência que possuíssem “(…) condições de acompanhar e desenvolver as atividades curriculares programadas do ensino comum, no mesmo ritmo que os alunos ditos ‘normais”’, excluindo grande parte dos alunos com deficiência do sistema regular de ensino, empurrando-os para a Educação Especial. A virada só veio com a já citada Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, 14 anos depois.

A inclusão, como tem sido cultura, vem abrindo caminho a duras penas no nosso país, sofrendo mais um golpe recentemente por meio do decreto presidencial 10.502/2020, que institui a “nova” Política Nacional de Educação Especial (PNEE), num ato de indiferença aos avanços legislativos conquistados. O Decreto cerra os olhos para toda essa história e promove um atraso ao estimular o financiamento às instituições especializadas como fuga para os desafios demandados por uma Educação de qualidade para todos e retrocede para um olhar biomédico sobre as pessoas com deficiência, erguendo argumentos para que a escola possa negar matrícula às crianças e adolescentes com deficiência, assegurando-lhes o lugar de conforto, institucionalizando a exclusão.

O Decreto promove retrocesso ao negar o direito ao Atendimento Educacional Especializado (AEE), previsto na atual Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, no contraturno, e permite que ele aconteça no turno. Ou seja, criando as “salas especiais”, separando a criança da sala de aula comum. O que pode ser resumido em uma só palavra – segregação.
Alguma familiaridade com padrões escolares atuais com o processo descrito acima não é mera coincidência, pois olhamos a legislação de uma distância cruel, aprisionados a uma prática arcaica, que compromete a garantia de direitos já conquistados. Por isso, acreditamos que a chave para essa mudança, já que as Leis vêm, historicamente se posicionando ao lado das pessoas com deficiência, está na inserção dos estudos sobre aprendizagem na diversidade na formação inicial e contínua de educadores. 

A partir da formação das pessoas, a estrutura das escolas será repensada, pois a comunidade escolar estará mais bem preparada para lidar com as diferenças – da merendeira ao gestor público. São as pessoas e seus olhares que vão reconhecer as demandas, gerar as necessidades e encontrar os caminhos para a solução. Formar pessoas é transformar a sociedade. É concretizar o sonho de uma sociedade mais justa, solidária, equânime e, assim sendo, inclusiva, o que só é possível por meio da atuação, na prática, de um educador com formação contínua, reflexão constante e escuta ativa.

Sensibilização e mobilização não são suficientes para garantir o avanço. É preciso garantir uma política pública estruturada para a inclusão, o que só se faz com direcionamento de recursos públicos que transponha o que está explicitado no papel, para a prática.

Sou cidadã, mãe de uma criança com deficiência, militante por uma Educação de qualidade para todos, e diretora de comunicação da Avante – Educação e Mobilização Social, uma ONG que atua pela defesa de direitos há 25 anos. Entre suas principais estratégias de atuação estão os processos formativos, em especial de educadores. Ao longo desse tempo dialogamos com cerca de 66 redes de educação no território brasileiro e atuamos em formação continuada dentro do ambiente escolar em cerca de 1500 escolas. Nosso trabalho sempre se inicia com um diagnóstico da rede parceira, permeado pelo diálogo e articulação, finalizando com um relatório de resultados, o que tem nos possibilitado observar a quase ausência do tema da inclusão na formação desses profissionais.

O trabalho junto às redes tem sido basilar para valorização e qualificação do trabalho dos profissionais, em especial do coordenador pedagógico, para reconhecimento e fortalecimento do seu papel como formador dentro da escola. Os diálogos partem da raiz, desde a concepção de infância, promove uma análise da prática cotidiana tendo como referência os marcos legais da Educação brasileira e seus principais teóricos, criando um ambiente de reflexão permanente e alimentador de boas práticas.  
Ao longo dos trabalhos realizadas nas diversas redes municipais parceiras percebemos um parcial conhecimento e uso dos documentos norteadores como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o planejamento e realização das práticas pedagógicas, seja por parte de educadores como de gestores. Essa situação se agrava em relação aos documentos que definem as diretrizes para uma Educação Inclusiva, não acompanhando os avanços conquistados no âmbito das Leis.

Corroborando com os dados da pesquisa realizada pela Avante e Montessori T21, dados publicados em um artigo da Revista Práxis Educacional¹ no ano passado (2020) revelam que os currículos dos cursos de licenciatura (para além da pedagogia) não estão estruturados para preparar os profissionais para atuar num sistema que garanta uma Educação de qualidade para todos. A pesquisa evidencia que das 493 disciplinas obrigatórias analisadas, apenas nove (09), um percentual de 1,8%, abordam a educação inclusiva nos currículos dos cursos pesquisados.

A falta de formação adequada dificulta a elaboração, no cotidiano da escola, de um currículo pensado para criar uma escola inclusiva, com estratégias de aprendizagens voltadas para os indivíduos, possibilitando que participem da construção coletiva do conhecimento, dentro e fora da sala de aula, e que se articule, dentro da própria instituição, a parceria: professor regente, professor de apoio e o Atendimento Educacional Especializado.

Ao deixar o contexto das universidades, a profissão da docência demanda uma formação continuada, com reflexão constante da prática para atender as especificidades de cada aluno, com ou sem deficiência. No entanto, o que existe de formação nas redes repete a carência de conteúdo dos currículos universitários voltados para aprendizagens e reflexões sobre inclusão.

Ao longo dos seus 25 anos de existência, a Avante sustenta a prática de realização de um diagnóstico das redes parceiras, antes de iniciar qualquer projeto. Este documento ajuda a definir os melhores rumos das formações e o monitoramento dos resultados. No diagnóstico realizado pela Avante na Rede Municipal do Paulista (PE), no desenvolvimento da Tecnologia: Formação Continuada na Educação Infantil, em parceria com o Itaú Social em 2019/2020, foram identificadas iniciativas inclusivas na Rede Municipal. 
No Relatório Final de Avaliação de Resultados² dessa iniciativa, na meta de n° 7 – “comprometimento e valorização da equidade como princípio educativo, de modo a produzir recursos e estratégias pedagógicas que contemplem a diversidade”, tendo como indicador: a equidade como princípio no processo educativo, verificou-se uma situação na qual profissionais da rede afirmam, na sua grande maioria, que adotam práticas pedagógicas comprometidas com o princípio da equidade de gênero e de raça/etnia. Entretanto, para uma parte significativa dos profissionais ouvidos, a organização dos espaços e materiais nas instituições ainda não contemplam as necessidades das crianças com deficiências.
A percepção da instituição sobre a temática, considerando a complexidade do tema, que envolve coerência entre discursos e práticas, é a necessidade de mais investimentos da Rede tanto na aquisição de materiais, adaptação da infraestrutura, como na formação e no acompanhamento das práticas. Um cenário comum a outras redes públicas brasileiras.

Regra geral, as iniciativas para atendimento às demandas de inclusão são, muitas vezes, isoladas, partindo de professores que se organizam para dar respostas às necessidades do aluno com deficiência naquele momento matriculado em sua classe, e que tendem a não ir além de adaptações e flexibilizações. Ou seja, não há uma revisão curricular com vistas à inclusão, que considere e respeite as características de cada indivíduo, com ou sem deficiência, prevalecendo práticas padronizadas.
A revogação do Decreto 10.502 representaria um avanço na consolidação de direitos já postos na forma da Lei, nos alertando para avançar, também, na direção da implementação desses direitos na prática, ou corrermos o risco de tornar o Brasill um país partido pela segregação, triste e profundamente machucado.

Referências bibliográficas:
 ¹Ver: DIAS, Viviane Borges; SILVA, Luciene Maria da. EDUCAÇÃO INCLUSIVA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: o que revelam os currículos dos cursos de licenciatura?. Práxis Educacional, [S.L.], v. 16, n. 43, p. 406-429, 1 dez. 2020. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia/Edicoes UESB. 
²Avante – Educação e Mobilização Social (org.). Relatório Final Avaliação de Resultados – formação continuada na educação infantil: ciclo 2019/2020, município Paulista (PE). Salvador: [s.n], 2020.

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