Educação, proteção, prevenção e escuta de crianças na história do combate ao Trabalho Infantil no Brasil

Uma boa notícia na Semana Mundial de Combate ao Trabalho Infantil: nos últimos 15 anos houve uma redução de cerca de 50% do número de crianças e adolescentes trabalhando no Brasil. No entanto, apesar de termos menos cidadãos de 5 a 17 anos no trabalho, o combate ao problema tem se tornado cada vez mais complexo, devido a sua relação com a invisibilidade social, a violência e a criminalidade, além de ter como forte aliado a perversa lógica do consumo.

Em 2002, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o Brasil tinha 5,4 milhões de crianças e adolescentes ocupados. Em 2015, a mesma pesquisa registra cerca de 2,6 milhões. Ao longo desse período, a Avante, tendo como um dos principais parceiros a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte da Bahia (SETRE), tem participado ativamente das ações de combate no Estado, que colaboraram para a redução dos índices de Trabalho Infantil. Hoje, a instituição integra a vice-presidência do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador da Bahia (FETIPA – BA).

Ana Luiza Buratto, vice-presidente da Avante-Educação e Mobilização Social e coordenadora de diversos projetos ligados à temática, conta, em entrevista, um pouco dessa trajetória e aborda o vínculo que existe entre o Trabalho Infantil e o Trabalho Análogo ao Escravo. Temática que entrou para a linha de ação da Avante desde o ano passado (2016). “O trabalho análogo ao escravo é trabalho precarizado. E o Trabalho Infantil é resultante da precarização do trabalho das famílias. Além disso, grande parte dos trabalhadores resgatados do Trabalho Análogo ao Escravo foram submetidos ao Trabalho Infantil quando crianças. Normalmente eles caminham juntos”, disse Ana Luiza.

Confira entrevista na íntegra:

Desde quando a Avante está envolvida com essa temática?

A Avante começou sua atuação no Combate ao Trabalho Infantil por onde ela se propôs a trabalhar enquanto organização da sociedade civil no ato da sua fundação – a via da educação. Então, nós começamos formando educadores para trabalharem com crianças no contra turno, no âmbito do PETI [Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do governo federal], quando a Avante tomou o Trabalho Infantil como uma de suas bandeiras de luta. Nessa época, 15 anos atrás, havia mais Trabalho Infantil, muito mais do que tem hoje, do ponto de vista de uma diversidade de crianças, especialmente nos pequenos municípios, na zona rural, trabalhando muito na agricultura e no sisal, o que representava uma ameaça grande à saúde física.

De lá para cá muitos atores entraram nessa luta e o Brasil assinou convenções e acordos inclusive internacionais [a exemplo: Convenção 182 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2000; Convenção de número 138, que estabelece a idade mínima para o trabalho], estabeleceu parcerias, especialmente com a OIT, e focou mais fortemente o problema. Dessa forma, foram surgindo, nas estruturas governamentais, instâncias que se tornaram mais claramente responsáveis pela prevenção e combate ao Trabalho Infantil. Foram criados, nos ministérios e secretarias, departamentos, coordenações ou setores com essa missão mais explicita e publicamente divulgada.

A Bahia acompanhou esse fluxo?

O Estado da Bahia saiu bem na frente nesse processo todo, porque, não apenas a secretaria de Assistência Social, como é esperado, assumiu essa responsabilidade, mas também a SETRE [Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte].

Foi nesse momento que o estado da Bahia estabeleceu uma parceria muito próxima com a OIT, que abriu um escritório aqui, e se propôs a construir e estruturar a Agenda Bahia do Trabalho Descente – primeira Agenda Estadual surgida no Brasil. Um pouco antes dessa época, por volta de 2007, além de estarmos trabalhando no PETI, a OIT, simultaneamente à parceria estabelecida com o Estado, nos procura para ajudar a compor o diagnóstico do Trabalho Infantil na Bahia. Então, o engajamento da Avante na temática intensifica-se com a elaboração do Documento de Linha de Base sobre Trabalho Infantil no Estado da Bahia [2008], contendo informações sumárias confiáveis sobre o contexto no Estado.

O impacto da realização do Diagnóstico na Avante foi enorme, envolveu praticamente todo o corpo técnico da instituição, além de envolver uma articulação muito grande nossa com a SETRAS [então Secretaria do Trabalho e Ação Social, atual SETRE], com a SEI [Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia], com vários órgãos do governo, para a gente compor esse diagnóstico. O documento foi construído com base em dados secundários, mas também contou com dados primários, colhidos mediante entrevistas feitas com muitos técnicos e lideranças da comunidade baiana, pois precisávamos de informações mais vivas das que os dados secundários não nos davam.

Qual foi o papel desse documento nas ações desenvolvidas entre a SETRE e a OIT? 

Ele serviu de base para o Estado se posicionar frente ao Trabalho Infantil. Foi um trabalho muito bom, tendo a OIT muito próxima, tanto criticando, como validando o Diagnóstico, dando uma contribuição enorme. A partir dessa ação nós ganhamos uma expertise, nos aproximamos muito do Estado, no sentido da Agenda Bahia do Trabalho Descente, porque a gente teve que fazer várias apresentações, não só no âmbito de cada secretaria, mas apresentando-o num grande seminário, envolvendo instituições e movimentos sociais, envolvendo o Estado, envolvendo representações municipais. Entramos em contato com todos esses entes e isso nos deu, digamos assim, uma abertura para trabalhar com a temática, permitindo o avanço na perspectiva da prevenção pela Educação, para o âmbito da proteção daquelas crianças e adolescentes que já haviam sido submetidas ao Trabalho Infantil e precisavam ser retiradas dessa situação.

Foi quando iniciamos o trabalho de fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos [SGD – 2010] e partimos para o combate mais direto por meio de uma ação articulada, que envolvia não só a Educação, mas também a Saúde, a Assistência Social, o Conselho Tutelar, o Conselho de Direitos, o Ministério Público e o Juizado da Infância. Cresce o trabalho e fizemos diversos projetos nessa perspectiva.

De alguma forma, esses trabalhos foram articulados com as ações do poder público?

Sim. Nós realizamos um trabalho no Território Nordeste II, em parceria com a OIT, que foi muito marcante. Esse Território tem 18 municípios e era o que possuía os maiores índices de Trabalho Infantil no Estado da Bahia à época. Neste meio tempo, no âmbito do Estado, estavam acontecendo as Caravanas de Erradicação do Trabalho Infantil, e a primeira aconteceu nesse território. O Diagnóstico trouxe os dados fundamentais por onde as Caravanas deveriam passar.

E o que eram as Caravanas? Eram uma iniciativa do Estado, também apoiada pela OIT, para mobilizar as comunidades, a população local, para essa problemática, que à época era tão naturalizada. As pessoas não achavam que era algo que pudesse prejudicar as crianças, até apoiavam o Trabalho Infantil, porque era um menino ou menina que estava ajudando a sua família. Não se via como um problema uma criança em Trabalho Infantil, se via como uma qualidade da criança –  um menino batalhador. Essa era a cultura predominante. E ainda hoje se vê essa lógica, só que já com uma visão mais crítica por parte das famílias e das próprias crianças.

Como se chegou a essa conclusão em relação à visão das crianças e das famílias?

Após esse projeto com a OIT, surgiram outros de fortalecimento do SGD: já em caráter de proteção, combate e prevenção, apoiados pelo FUNTRAD [Fundo de Promoção do Trabalho Decente] e pela SETRE, como o Todos Juntos [realizado em duas edições – 2013 e 2014], quando ouvimos famílias de crianças em situação de vulnerabilidade. Então, em 2014 tivemos o Posso Falar? e entramos na área da participação de crianças para o combate e prevenção ao problema.

A gente escutou crianças em situação de vulnerabilidade em relação ao Trabalho Infantil e capacitou agentes públicos para a escuta. Como a questão cultural era o maior desafio para a gente lidar – quebrar, desconstruir essa naturalização do trabalho – escutar as crianças era muito importante pra a gente ouvir até que ponto elas já estavam impregnadas dessa cultura ou não, até que ponto elas já estavam sensibilizadas, quer seja pelas Caravanas, quer seja pela escola, pela arte (tem muito artista engajado na causa), quer seja pelas inúmeras campanhas do dia 12 de junho, de que trabalhar não pode, que chega mais facilmente nos municípios hoje, pois a comunicação é muito viva. Então, nossa questão era saber até que ponto as crianças têm essa consciência?

Até que ponto?

O que o Posso Falar? mostrou é que as crianças que vivem expostas a situações de Trabalho Infantil, mesmo que não esteja necessariamente trabalhando, já se posicionam de forma mais crítica à situação. Já existe uma contradição. Elas trouxeram, por exemplo, a questão do valor do trabalho na construção de um relação solidária na família – que é verdade -, mas ao mesmo tempo eles diziam que o trabalho pode prejudicar a saúde, quando é muito peso pra as crianças carregarem, e que criança tem que ir para a escola. Ao mesmo tempo que valorizavam o esforço, a coragem e o resultado solidário daquele trabalho, diziam: mas é muito, fica cansado, dorme na aula, prejudica as costas.

O trabalho de conscientização, então, surtiu efeito e tem desempenhado seu papel no combate ao problema. O que fica hoje de maior desafio?

Hoje temos núcleos de Trabalho Infantil mais difíceis de serem atingidos, seja na conscientização, seja no combate ou na prevenção. Geralmente em regiões ou cidades mais precarizadas economicamente ou socialmente, como Salvador, aonde você tem uma população enorme, e 70% dela em situação de pobreza. Muita gente nas periferias, aonde o serviço público não chega.

Que núcleos são esses?

Núcleos extremamente ligados à contravenção. Veja bem, onde o Trabalho Infantil mais acontece hoje? No tráfico de drogas ou na exploração sexual de meninas e meninos e, também, no trabalho doméstico. E por quê? Os dois ligados a contravenção [tráfico e exploração], pra maioria, é invisível, e chegar junto é difícil. O trabalho doméstico ainda mais, pois está dentro das casas e a fiscalização não pode entrar.

O tráfico e a exploração sexual estão muito ligado à violência. Está aí o Mapa da Violência mostrando o horror que vivemos cotidianamente. Outros tipos de Trabalho Infantil a gente faz o enfrentamento pela mobilização, pela educação, pelas sensibilização das famílias, com a ajuda de programas do governo, como o Bolsa Família, que tem como condicionante as crianças estarem frequentando a escola. Ou seja, uma série de fatores sobre os quais temos um pouco mais de domínio. No tráfico, ou na exploração sexual, há uma complexidade maior.

Já o trabalho doméstico, apesar da possibilidade de passar pela conscientização dos familiares e dos empregadores, existe um “jogo de interesses”, no qual as famílias sustentam a naturalização sob argumento de um suposto benefício da criança, geralmente menina, “ganhar algo”: um turno está na escola; ou porque é bem alimentada; tem a roupinha dela; tem um lugar decente pra dormir. Só que nesse jogo, corre-se alguns riscos como o de horas excessivas de trabalho, baixa remuneração, nenhum direito e até mesmo a exploração sexual. Como isso não é uma regra, para as famílias esse “jogo de interesses” é validado.

Quando você descreve o trabalho doméstico, você menciona característica relacionadas ao Trabalho Análogo ao Escravo, como a precarização, a “troca de favores” e a exploração financeira, e especificamente, a exploração sexual. Essa relação é válida em relação ao Trabalho Infantil, de forma geral?

Existe uma forte relação. O Trabalho Análogo ao Escravo é o trabalho precarizado, onde existe violação de direitos. E o Trabalho Infantil é também uma forma de violação de direitos. Eles caminham juntos muitas vezes, ou no âmbito inter geracional, no qual aqueles que se sujeitam ao trabalho escravo foram trabalhadores infantis. Ou quando os adultos levam seus filhos para trabalhar junto, nessa condição de trabalho análogo ao escravo. Então, o trabalho está precarizado e os filhos submetidos dos trabalhadores muitas vezes submetidos ao Trabalho Infantil.

Então, o combate a um tem impacto no combate ao outro…

Com certeza. No entanto, necessariamente, o combate ao trabalho análogo ao escravo não extermina o Trabalho Infantil, pois há outras lógicas envolvidas. Como a lógica perversa do consumo, na qual a criança ou adolescente não está trabalhando para sobreviver, como no trabalho escravo, mas sob o argumento de comprar “suas coisinhas, seu tênis, seu celular”. Mas trabalhar com os dois está ajudando muito.

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